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Uma real questão de interpretação? | Art.180º/3 e Art.476º

 

Como sabemos, a arbitragem tem sido um instituto com crescimento notório como forma alternativa de resolução de litígios. Nos últimos anos as alterações deste regime têm cada vez maior relevância. 

                       O Art.180ºdo CPTA é o preceito que regula a arbitragem, onde estão elencadas as matérias para as quais o julgamento “sem prejuízo do disposto em lei especial” pode ser constituído em tribunal arbitral. Vemos, deste modo, que existe no nosso ordenamento jurídico, um regime do qual resulta a permissão genérica por categoria de matérias, do recurso à arbitragem. Quanto à impugnação de atos pré-contratuais, a redação originária do 180º tinha deixado este tema de parte, sendo isto incongruente[1] com a admissibilidade nos mais amplos termos da arbitragem sobre atos praticados no âmbito de execução dos contratos.

Foi com objetivo de resolver esta questão que atualmente o Art.180º/3 diz respeito apenas à arbitragem de atos pré-contratuais, atinentes à formação dos contratos previstos no Art.100º. Tendo o legislador, nesta matéria, decidido remeter o essencial da sua regulação para o Código dos Contratos Públicos (doravante CCP), em específico o 476º. Para o professor MARIO AROSO DE ALMEIDA estes “passos que não foram a nosso ver, felizes, sendo possíveis de comprometer o êxito da empreitada”. Para o professor, o regime do 476º “foi desde logo infeliz porque, assumindo embora o propósito de promover a arbitragem em centros institucionalizados, nada fez para adequar a realidade desses centros às exigências próprias da arbitragem de Direito Administrativo, designadamente em matéria pré-contratual”.

                       A questão que hoje nos ocupa é a de saber perante que tipo de arbitragem estamos no Art.476º do CCP – arbitragem necessária, aquela imposta por lei, ou voluntária, que resulta da vontade das partes. 

 

                       Observando o Artigo em apreço e quanto à discussão de que nos ocupamos, encontramos na doutrina posições distintas quanto a este aspeto. Para o Professor João Tiago Silveira, por exemplo, não se retira do preceito que a arbitragem seja necessária, utilizando o argumento de que a entidade adjudicante pode optar por escolher o modo de resolução de conflitos alternativo, ou não. Para este professor, a possibilidade de o interessado rejeitar esta via existe sempre, mesmo que a rejeição importe a não participação do interessado no procedimento. Para este professor é um caso de arbitragem voluntária. Sendo esta conclusão fruto de uma conjugação entre a vontade da entidade adjudicante com a dos interessados, já que pode haver recusa da sua parte. Não se afigurando aqui a não participação do interessado como um elemento que levaria a arbitragem a ser necessária, sucedendo apenas uma consequência da escolha.

Para o Professor Tiago Serrão, por outro lado, este preceito representa um caso de arbitragem necessária. Já que, uma vez escolhido este modo de solução pela entidade adjudicante, para regular procedimentos ou contratos, os interessados não têm alternativa a não ser aceitar a opção da entidade. Se o fizerem, a sua proposta será preterida. Para o Professor Miguel Assis Raimundo, também não estaríamos perante nenhum tipo de arbitragem necessária, mas sim arbitragem voluntária. Isto porque caberia ao interessado, segundo o professor, fazer um juízo global do seu interesse em participar, ou não, num dado procedimento. Havendo sempre, na sua opinião, um exercício de autonomia de ambas as partes, que o leva a poder afirmar que estamos perante arbitragem voluntária

Importa frisar também que, a posição da doutrina que identifica este tipo de arbitragem como necessária, sugere que não é necessária por força da lei, em vez disso, por força da vontade da entidade adjudicante que impõe a arbitragem através de uma permissão legal.

Para o Professor Marco Caldeira, “entidade adjudicante não pode impor aos interessados a aceitação da arbitragem: uma espécie de arbitragem necessária por imposição administrativa.”[2]

 

                       A meu ver, a forma de averiguar se estamos perante uma arbitragem voluntária ou necessária prende-se com os efeitos causados nos interessados se estes não aceitarem o modelo escolhido.  Sendo a não aceitação um canal para a exclusão dos elementos apresentados, na minha opinião, estamos perante uma arbitragem necessária. 

Na realidade, parece me que se trata de um regime que até podia ter como objetivo seguir o modelo de arbitragem voluntária, mas o seu cerne, leva ao contrário. Acabamos, assim, por estar perante uma arbitragem voluntária aparente – que é, realmente, uma arbitragem necessária – por força da imposição administrativa. Tornando-se pouco relevante retratar os casos em que a entidade não escolha a arbitragem como processo. Não sendo esse momento o indicado para aferir se de facto existe voluntariedade no processo alternativo de resolução de conflitos ou não.

Uma vez sido escolhido pela Entidade Adjudicante, o que temos é um regime que persuade o interessado a concordar com o modelo eleito, visto que se o interessado se opuser, é excluído do procedimento. Exclusão que se evidencia como um impedimento excessivo ao acesso do procedimento, chegando, para alguns a pôr em causa o princípio da proporcionalidade[3]. Querendo o interessado participar, mesmo que não concorde com a arbitragem, tem de ficar. Concordamos então com a doutrina que afirma a arbitragem necessária. 

 

                       Concluímos assim que ainda que tenham sido passos dados no sentido do melhoramento e do maior uso da figura da arbitragem no seio administrativo, houve claros problemas quanto à compatibilidade dos dois regimes (entre o 180º CPTA e o 476º CCP), comprometendo os objetivos fixados com as intenções iniciais. De modo que, como é dito[4], apenas a continuação prática poderá conduzir a um sistema mais claro e coeso. 

 

 

BIBLIOGRAFIA

 

ALMEIDA, Mário Aroso de, “Manual de Processo Administrativo”, Almedina, 4ª edição, 2020;

 

CALDEIRA, Marco/RAIMUNDO, Miguel Assis, diálogo disponível em http://contratospublicos.net/2016/10/07/arbitragem-artigo-476-o-do-anteprojecto/;

 

GOMES, Carla Amado; NEVES, Ana F.; SERRÃO, Tiago (coord.), “Comentários à legislação processual Administrativa”, Vol. II, AAFDL, 5ª edição, 2020;

 

RAIMUNDO, Miguel Assis, “Nota sobre a arbitragem no Anteprojeto de revisão do Código dos Contratos Públicos” – Newsletter CAAD – Arbitragem Administrativa e Fiscal, nº1, 2016 disponível emhttps://www.caad.org.pt/publicacoes/newsletter/newsletter-set-2016;

 

 SERRÃO, Tiago, “Considerações sumárias sobre a arbitragem no CCP revisto” in Revista de Direito Administrativo, nº1, AAFDL Editora, Lisboa, 2018;

 

SERRÃO, Tiago, “A arbitragem no CCP revisto” in AA.VV., Comentários à Revisão do Código dos Contratos Públicos, AAFDL Editora, 2017;

 

 SILVEIRA, João Tiago, “A Arbitragem e o artigo 476º no Código dos Contratos Públicos” in Revista de Direito Administrativo, nº1, AAFDL Editora, Lisboa, 2018.

 

 

Madalena Simões Vaz

Nº59169 TA ST7


[1]  ALMEIDA, Mário Aroso de, “Manual de Processo Administrativo”, Almedina, 4ª edição, 2020;

[2] Marco Caldeira em diálogo com Miguel Assis Raimundo, no blog Contratos Públicos: cf. https://contratospublicos.net/2016/10/07/arbitragem-artigo-476-o-do-anteprojecto/.

[3] Cf. Paulo H. Pereira Gouveia, “Arbitragem administrativa...”, cit., página 78.

[4] Na discussão criada no blog Contratos Públicos: cf. https://contratospublicos.net/2016/10/07/arbitragem-artigo-476-o-do-anteprojecto/

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