1. Introdução
Esta exposição tem como tema o Âmbito da Jurisdição Administrativa, nomeadamente a análise ao artigo 4º/Nº1 alínea f) do ETAF. Desta forma, é relevante fazer uma breve referência introdutória, mencionado que na Ordem Jurídica Portuguesa, existem dois tipos de tribunais: os tribunais judiciais e os tribunais administrativos e fiscais, conforme consta da nossa lei fundamental, art. 209º da CRP.
Durante muito tempo, os tribunais Judiciais predominavam os litígios, sendo que os tribunais administrativos tinham escassos processos para decidir. Contudo, após a reforma de 2002/2004 ocorreu um aumento de atribuição de matérias à jurisdição administrativa, pelo que o cenário se veio alterar.
Desta forma, surge a preponderante questão acerca do tema em análise: quando é que uma ação deve ser proposta nos tribunais Administrativos e não perante um tribunal Judicial?
2. Os Tribunais Administrativos e Fiscais
A existência da jurisdição administrativa e fiscal, provém de razões históricas, mas hoje justifica-se, por razões que se prendem com a vastidão e complexidade do universo das relações jurídicas que são disciplinadas pelo Direito Administrativo e pelo Direito Fiscal. [1]
Como dispõe o art. 212º nº3 da CRP:
“Compete aos tribunais administrativos e fiscais o julgamento das ações e recursos contenciosos que tenham por objeto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais.»
De acordo com MÁRIO AROSO DE ALMEIDA, isto significa, administrar a justiça em nome do povo nos litígios cuja resolução dependa da aplicação de normas de Direito Administrativo ou de Direito Fiscal. [2]
Contudo, o critério não é material, isto é, apesar de a justiça administrativa resolver questões de direito administrativo que sejam atribuídas à ordem judicial de tribunais administrativos, não é por um caso envolver direito substancial administrativo que irá tratar-se do mesmo âmbito de tribunais administrativos. Assim sendo, a jurisdição administrativa deve ser delimitada através de regras de competência dos tribunais administrativos.
3. A delimitação do âmbito da jurisdição administrativa
Segundo JOSÉ VIERA DE ANDRADE [3], o âmbito da justiça administrativa não se determina, simplesmente no plano substancial e no plano funcional, com base na CRP, dependendo ainda do recorte orgânico que seja dado à Jurisdição Administrativa.
A competência do tribunal para julgar a causa que é submetida à sua apreciação depende de pressupostos processuais, como: o da competência em razão da jurisdição. Pelo que, a competência em Razão da Jurisdição é o estabelecimento da questão de quando é que uma ação deve ser proposta perante a jurisdição administrativa e fiscal e não, perante os tribunais judiciais.
Este tema gera bastante controvérsia na doutrina, a posição de JOSÉ VIEIRA DE ANDRADE [4], que é apoiada pela jurisprudência, considera que o preceito constitucional não se deve ler como um “imperativo restrito”, mas sim como uma regra definidora de um modelo típico que pode ser alvo de ajustes ou desvios, acentuando que jamais se deve prejudicar o núcleo essencial da organização das jurisdições.
3.1 O âmbito da jurisdição administrativa segundo o ETAF
A delimitação do âmbito de jurisdição encontra-se regulada no
ETAF, nomeadamente no art. 4º, no entanto podem existir derrogações que resultem de legislação especial onde o legislador entendeu que os litígios deveriam ser regulados de modo diferente.
Com a alteração de 2015, o art.1º que, até então, definia a competência dos Tribunais Administrativos referindo-se aos litígios emergentes das relações jurídicas administrativas, passou a remeter a sua definição jurídica para o Art.4º, com o acrescento da alínea o) do nº1, alínea essa referente a situações “não expressamente previstas” de carácter substancial e generalizado.
Do preceito legal referido, retira-se a notável preocupação do legislador em dissipar os problemas anteriormente detetados com a reforma de 2004 em distribuir a competência da jurisdição administrativa através de enumeração (não taxativa), dos litígios nela incluídos. É neste sentido, que o Art.4º do ETAF concretiza o Art.212º/3 CRP, em que constituiu, este último, como critério material da relação jurídica administrativa e fiscal. [5]
De acordo com o Senhor Professor VASCO PEREIRA DA SILVA, neste preceito o legislador consagrou todos os critérios possíveis de qualificação de uma relação jurídica como administrativa: os critérios restritos do passado, como o poder, as relações de poder, os poderes de autoridade, a regulação pelo direito administrativo; mas ao mesmo tempo, os critérios ampliativos, dos direitos dos particulares, da função administrativa, da realidade do interesse público que está a ser realizado. Como todos estes critérios existem em simultâneo, tudo cabe ao Contencioso Administrativo.
Assim, resolveram-se os problemas do âmbito de jurisdição porque a amplitude dos critérios e a sua comutatividade permite que o Contencioso Administrativo tenha um âmbito de aplicação que corresponde à integralidade da relação jurídica administrativa.
4. Acórdão processo 09/13
Segundo o Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, correspondente ao Processo 09/13, podemos evidenciar que em matéria de factos, estamos perante uma situação de falta de pagamento de uma renda pela ré ao Município de Faro, que diz respeito a um imóvel pertencente ao parque habitacional do Município. O facto de se tratar de um contrato, que aparentemente seria do âmbito do direito privado, o contrato de arrendamento, no entanto estabelecia-se entre um particular e um órgão público, a Ré e o Município de Faro.
O processo foi remitido, a Requerimento do Município de Faro, para o Tribunal Judicial de Faro, porque o Tribunal administrativo e Fiscal de Loulé se julgou incompetente em razão da matéria.
Pelo que, foi declarada a incompetência em razão da matéria do tribunal comum, sendo a ré absolvida da instância.
Coube então clarificar qual a natureza contratual e como terá sido a resposta do Contencioso Administrativo a esta situação. Só demonstra que, até então, ainda nos prendíamos com dúvidas na aplicabilidade das matérias correspondentes aos tribunais judiciais ou aos tribunais Administrativos. Uma vez que o processo foi intentado primeiramente no Tribunal Judicial da Comarca de Faro, e só posteriormente remetido para o Tribunal de Conflitos.
Como resposta ao caso apresentado, o tribunal excluiu a jurisdição dos tribunais judiciais, na medida em que “os tribunais judiciais são os tribunais comuns em matéria cível e criminal e exercem jurisdição em todas as áreas não atribuídas a outras ordens judiciais” e aponta a alínea f) do n. º1 do Art.4º do ETAF:
“Responsabilidade civil extracontratual das pessoas coletivas de direito público, incluindo por danos resultantes do exercício das funções política, legislativa e jurisdicional, sem prejuízo do disposto na alínea a) do n.º 4 do presente artigo”.
Neste sentido, importa ter presente que na alínea f) clarificam-se vários aspetos quanto ao que cabe no âmbito de jurisdição administrativa e fiscal em matéria de litígios respeitantes àResponsabilidade Civil Extracontratual das pessoas coletivas de Direito Público. Tal como o caso demonstra, a Ré arrendou um imóvel ao Município de Faro, sito no Parque habitacional de Faro. Pelo que não se trata de um simples contrato de arrendamento de direito privado. [6]
Assim, por exemplo, em sede de Tribunal de Conflitos, tem sido decidido que os litígios relativos à aplicação do regime da renda apoiada a um contrato de arrendamento celebrado entre um município e um particular se inserem no âmbito da jurisdição administrativa.
Caso a ação lesiva (falta de pagamento da renda do imóvel ao município de Faro) não se enquadrasse nos tais poderes da Administração, ou se não se inserisse no seu regime normativo pela Responsabilidade Civil Extracontratual (alínea f. do Art.4º do ETAF), já a jurisdição administrativa não seria competente para conhecer da ação destinada.
É através deste regime legal que se visa obviar a estas situações. Pelo que, a pequena e quase inalterada, alínea f), tem igual importância que as demais. Foi criada a pensar tanto na função administrativa, como na função política e jurisdicional.
De igual modo enquadram-se na previsão da alínea f), os litígios respeitantes à responsabilidade civil emergente de atuações administrativas de órgãos públicos que não pertençam à Administração pública. E que excecionalmente não inseridos no preceito desta alínea f), os atos praticados pelo Conselho Superior da Magistratura, e pelo presidente do Supremo Tribunal Administrativo, correspondentes à alínea c) e d) do nº4 do Art.4º do ETAF.
Deste modo, aquilo em que o legislador poderia ter inovado, acabou por deixar intacto. Pelo que com a reforma de 2015 a função de consolidação do Art.4º do ETAF foi desempenhada, essencialmente pela alínea l) do nº1, onde se verificou um maior esforço de conciliar o universo do Contencioso com o universo do Direito Administrativo adjetivo e substantivo.
5. Conclusão
Posto isto, e tendo por base o Acórdão 09/13, conclui então o Tribunal de Conflitos, e reafirmado pelo STA, que os tribunais administrativos seriam competentes para dirimir o litígio. O que, na minha opinião, parece-me uma decisão muitíssimo acertada tendo em conta as orientações tomadas pela doutrina.
Com esta análise, é possível concluir que na responsabilidade civil o legislador pecou por ter sido tão amplo, pelo que as expressões não foram as mais adequadas. No entanto, nos dias de hoje, encontrado-nos numa fase do Direito Administrativo indubitável e mais seguro tanto para os particulares, como para os juízes de ambas as jurisdições.
Ana Isabel Almeida Pires
Nº57288, 4ªA-SUBTURMA 7
Bibliografia
1. ALMEIDA, Mário Aroso de-Manual de Processo Administrativo: Almedina, 3º Edição, 2019.
2. ANDRADE, José Vieira de- A Justiça Administrativa: Almedina, 15º Edição, 2016.
3. GOMES, Carla Amado; NEVES, Ana Fernanda; SERRÃO, Tiago- Comentários à Revisão do ETAF e do CPTA: AAFDL Editora, 3º Edição, 2017.
4. Transcrições das Aulas Teóricas de CAT do Professor Vasco Pereira da Silva.
5. Acórdão disponível: http://www.dgsi.pt/jsta.nsf/35fbbbf22e1bb1e680256f8e003ea931/4230e6d2c2f4d9df80257c0b002ce110?OpenDocument&ExpandSection=1#_Section1
[1] ALMEIDA, Mário Aroso de-Manual de Processo Administrativo: Almedina, 3º Edição, 2019, pág. 57.
[2] ALMEIDA, Mário Aroso de-Manual de Processo Administrativo: Almedina, 3º Edição, 2019, pág. 57.
[3] ANDRADE, José Vieira de- A Justiça Administrativa: Almedina, 15º Edição, 2016, pág. 111.
[4] ANDRADE, José Vieira de- A Justiça Administrativa: Almedina, 15º Edição, 2016, pág. 105 e ss.
[5] GOMES, Carla Amado; NEVES, Ana Fernanda; SERRÃO, Tiago- Comentários à Revisão do ETAF e do CPTA: AAFDL Editora, 3º Edição, 2017, pág. 300.
[6] GOMES, Carla Amado; NEVES, Ana Fernanda; SERRÃO, Tiago- Comentários à Revisão do ETAF e do CPTA: AAFDL Editora, 3º Edição, 2017, pág. 304.
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