O artigo 93.º do Código do Processo nos Tribunais Administrativos (doravante “CPTA”) estabelece dois mecanismos únicos da jurisdição administrativa, que não têm qualquer referência no processo civil. O preceito estabelece duas possibilidades em processos cujo tribunal competente seja um Tribunal Administrativo de Círculo: por um lado, estabelece que todos os juízes de um tribunal possam decidir sobre uma determinada causa (julgamentos em formação alargada – alínea a), do n.º 1) e, por outro lado, que o tribunal possa submeter ao Supremo Tribunal Administrativo (doravante “STA”), para que este emita uma pronúncia vinculativa dentro do processo (consulta prejudicial, antes chamada de reenvio prejudicial, na versão originária do CPTA – alínea b), do n.º 1). Contudo, nos termos do corpo do n.º 1, o Presidente do Tribunal apenas pode recorrer a estes mecanismos quando “se coloque uma questão de direito nova que suscite dificuldades sérias e possa vir a ser suscitada noutros litígios”. Além destes pressupostos, Paula Costa e Silva acrescenta a repetibilidade como fator de aplicação, uma vez que a quaestio sub judice deverá servir como “moleta” interpretativa futura, ainda que não vincula como veremos de seguida. De referir, que o juiz da causa pode propor ao Presidente do Tribunal o recurso a estes mecanismos, sendo que a reforma de 2019 (ou “reforminha”, nas palavras de Vasco Pereira da Silva) veio prever a possibilidade de oficiosamente ser o Presidente a escolher estes mecanismos. Podemos assim, desde já, concluir que estaremos perante uma dever funcional do Presidente do Tribunal de Círculo, vinculado pelo cumprimento do artigo 93.º, n.º 1 do CPTA. Sendo materialmente mais complexa esta tramitação, a consulta requerida ao STA, está excluída nos processos urgentes, nos termos do n.º 3. Normativamente, será, contudo, mais interessante analisar a possibilidade de consulta prejudicial.
Como refere Mário Aroso de Almeida a teleologia deste preceito é garantir de modo inequívoco a uniformidade e a qualidade das decisões. Sem dúvida, que existe alguma inspiração no acesso à justiça, à luz do Direito da União Europeia. Aliás, a terminologia utilizada na versão originária não deixa qualquer desconfiança em relação a esse aspeto – é uma verdadeira questão prejudicial colocada ao STA.
O grande problema interpretativo está, no entanto, no n.º 5 (antigo n.º 4) do artigo 93.º, que se refere ao âmbito da pronúncia proferida pelo STA nestes casos. Refere o citado preceito que:
5 - A pronúncia emitida pelo Supremo
Tribunal Administrativo não o vincula relativamente a novas pronúncias, que, em
sede de consulta ou em via de recurso, venha a emitir no futuro, sobre a mesma
matéria, fora do âmbito do mesmo processo.
Teremos assim duas situações distintas: em
primeiro lugar, consultas e recursos no âmbito do mesmo processo; em segundo
lugar, consultas e recursos sobre a mesma matéria, mas fora do âmbito do
processo em questão. Ora, no primeiro caso, não será possível voltar a consultar
o STA, ficando esta possibilidade desta já excluída. Quanto ao recurso, quer
para o STA, quer para o Tribunal Central, uma vez que a pronúncia do STA, vincula
o Tribunal decisor em 1.ª instância, deve este também ser negado, não sendo
assim admissível o recurso relativo a questões de interpretação, uma vez que
está em causa a hierarquia dos tribunais administrativo. Quanto ao segundo
caso, isto é, pronúncias e recursos sobre a mesma matéria, mas fora do âmbito
do processo é necessário recorrer a uma sopesagem de princípios decisórios para
podermos interpretar o pensamento legislativo. Estão, nomeadamente, em causa, o
princípio da igualdade, na medida em que, um requerente sobre a mesma matéria,
esperará uma decisão semelhante à anterior, estando esta ideia também relacionada
com a harmonia decisória; e o princípio do justo e devido procedimento, isto é,
um procedimento baseado nas circunstâncias do caso concreto. Contudo, é relevante
referir que o artigo 93.º, n.º 5 não abre a porta à equidade decisória, nem a
uma vertente mais criativa do decisor, uma vez que essa interpretação, não
seria conforme à Constituição, mormente, do artigo 203.º e do positivismo legalista
vigente em Portugal, como refere J. P.
Charters de Marchante. Assim, o escopo do artigo 93.º, n.º 5 do CPTA
deve ser interpretado à luz das potenciais decisões em questão, isto é,
relativas a matérias do Direito relativamente recentes e pouco desenvolvidas,
ligadas a componentes técnicas, tecnológicas e científicas (Paula Costa e Silva dá o exemplo do
Direito de Propriedade Intelectual), bem como ligadas às leges artis,
que só uma análise casuísta poderá revelar a verdade material do caso.
Miguel M. Riscado - aluno n.º 58287
Bibliografia e Legislação
Código do Procedimento Administrativo
Almeida, Mário Aroso, Manual de Processo Administrativo,
2.ª ed., Almedina, 2016, pp. 394-396
Marchante, J. P. Charters de, Intervenção no 2.º Colóquio “Os
Tribunais, o Direito e a Lei” (disponível em https://youtu.be/_OgS4QZzO4U)
Silva, Paula Costa e, O desejável aprofundamento do diálogo entre tribunais. A consulta prévia, os tribunais arbitrais e o Supremo Tribunal Administrativo in e-Pública, III, n.º 3, dezembro de 2019, pp. 31-41 (disponível em https://www.e-publica.pt/volumes/v6n3a04.html)
Silva, Vasco Pereira da, Revisitando a “reforminha” do
Processo Administrativo de 2019 – “Do Útil, do Supérfluo e do Erróneo” in e-Pública,
III, n.º 3, dezembro de 2019, pp. 5-15
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