O que fazer quando os Direitos Constitucionais de todos os cidadãos são violados pela Administração?
Num contexto de emergência pandémica como o que vivemos, pode existir, como é o caso atualmente, a necessidade de restringir direitos dos cidadãos, como o Direito à Liberdade (cf. art.º 27.º/1 e /2 da CRP), em prol de um outro direito que, no momento e tendo em conta as condições, seja preponderante, o que pode ocorrer (apenas) nos termos dos art.ºs 18.º e 19.º da CRP. No caso que vivemos no presente, o Direito à Vida (art.º 24.º CRP) e à Saúde (art.º 64.º CRP) estão a ser salvaguardados ao máximo, comportando isto, por vezes, algumas restrições aos restantes direitos, liberdades e garantias. Contudo, a Constituição da República Portuguesa prevê os moldes em que tal pode ser feito, e quais os órgãos para tal competentes.
Todavia, no fim de semana que decorreu entre 30 de outubro e 1 de novembro, num momento de normalidade constitucional, o Governo, por Resolução do Conselho de Ministros (uma norma administrativa, portanto), decidiu impor restrições à circulação entre concelhos, o que originou 2 processos no Supremo Tribunal Administrativo, com os números 1958/20.9BELSB e 122/20.1BALSB. Sendo o primeiro deles centrado em questões processuais, que constituem o objeto de estudo da disciplina, centrar-nos-emos, maioritariamente, nele.
Efetivamente, o réu Governo é absolvido da instância por ilegitimidade ativa do partido político CHEGA!, na medida em que, por um lado, é dito que não faz parte dos poderes de um partido político intentar uma ação popular (9.º/2 CPTA) e, por outro, que a ação popular não é admissível numa intimação para proteção de direitos, liberdades e garantias (109.º CPTA).
Quanto ao primeiro argumento, a ação popular serve para que qualquer pessoa, independentemente de ter ou não interesse, possa requerer tutela de interesses da comunidade. Os requisitos para que uma pessoa coletiva associativa, como o é um partido político, são, por um lado, a detenção de personalidade jurídica (3.º a) DL 83/95), sendo que o partido a detém, conforme o art.º 3.º da lei orgânica n.º 2/2003; por outro, a inclusão expressa nas suas atribuições ou objetivos estatutários a defesa dos interesses em causa. Aqui, salvo melhor opinião, parece que um partido político, tendo, por definição, como objetivo a defesa dos direitos dos cidadãos do país em que exercem atividade (diferindo entre partidos, em princípio, apenas o modo como tal deve ser feito), tem inevitavelmente incluído nas suas atribuições o direito de ação popular. Os partidos políticos e os seus elementos têm como principal função a defesa dos interesses dos cidadãos, sendo essa a sua profissão e, no caso dos deputados, aquilo que é feito no Parlamento. Assim, tendo estes, muitas vezes, melhores meios para aceder à justiça do que os cidadãos por si, parece totalmente adequado que seja dada aos partidos políticos a legitimidade para agir em prol de interesses difusos da comunidade.
Por outro lado, é expresso que a intimação para proteção de direitos, liberdades e garantias é, por natureza, uma categoria de ação administrativa que existe para proteger interesses pessoais de alguém em específico, e, portanto, apenas essa pessoa teria legitimidade ativa. Daqui se concluiria que não cabe a ação popular neste expediente, na senda de Aroso de Almeida, Carlos Cadilha e Vieira de Andrade. Com a devida vénia feita a estes ilustres professores, não perfilhamos esta posição. De facto, a intimação para proteção de direitos, liberdades e garantias é um expediente existente para os momentos em que é necessária a célere emissão de uma decisão de mérito que imponha à Administração a adoção de uma conduta positiva ou negativa se revele indispensável para assegurar o exercício, em tempo útil, de um direito, liberdade ou garantia (cf. art.º 109.º CPTA). Ora, nos casos em que os direitos, liberdades ou garantias dos cidadãos são restringidos de forma inconstitucional de uma forma imediata (como foi o caso, sendo perfilhada a posição do voto de vencido do segundo acórdão mencionado, em que foi exposta a posição segundo a qual a ação interposta deveria ter sido julgada procedente), defendemos que existe a necessidade de haver um expediente que permita que estes sejam tutelados. A posição exposta no acórdão da ação interposta pelo partido político CHEGA! vai no sentido de que, no caso de haver uma norma administrativa deste género, cabe aos cidadãos agir ao abrigo do Direito de Resistência, para depois o Tribunal Constitucional declarar a inconstitucionalidade da norma com força obrigatória geral, o que importa efeitos retroativos. Contudo, o Direito de Resistência não é algo a que se possa apelar de uma forma geral por dois motivos: em primeiro lugar, o cidadão comum não tem um conhecimento profundo da Constituição nem de toda a dogmática existente à sua volta, bem como das condições de constitucionalidade das normas. Em segundo lugar, o Direito de Resistência é uma forma de autotutela que apenas pode ser usada quando o cidadão em questão tem a certeza de que aquilo que está a incumprir é ilegal ou inconstitucional. Associada à primeira razão, isto vê-se pelo segundo acórdão referido: nem o Supremo Tribunal Administrativo foi unânime quanto à não irregularidade da norma administrativa em causa, e a expetativa geral era de que a pretensão fosse julgada procedente quando não foi, pelo que os cidadãos que se fizessem valer do Direito de Resistência não teriam o seu direito assegurado.
Deste modo, se a Intimação para Proteção de Direitos Liberdades e Garantias não puder ser usada para tutela de interesses gerais da comunidade, os cidadãos não estão realmente protegidos de normas que sejam emitidas contra a Lei Fundamental ou outras leis de hierarquia superior às normas referidas, dado que esta forma de ação é a única que permite que, em casos como este, a tutela seja assegurada em tempo útil, o que implica que a ação popular possa ser associada a este tipo de ação. Assim, estaria, a nosso ver, correto o Supremo Tribunal Administrativo se, no lugar de ver a pretensão de Carla Lopes como uma pretensão individual para que o seu direito fosse assegurado e a norma não lhe fosse aplicada, a visse como uma Ação Popular, assegurando assim que os direitos de todos os cidadãos em Portugal eram preservados.
Daqui se pode concluir que esta interpretação tão restritiva da Intimação para Direitos Liberdades e Garantias é uma manifestação das sequelas da infância traumática do Direito Administrativo, em que a tutela da Administração é mais forte do que a tutela dos cidadãos (os “administrados”), pelo que, para se libertar realmente destes problemas, o Direito Administrativo deveria admitir esta Intimação, ou criar um expediente próprio para os casos como este, em que se protege em tempo útil interesses difusos da comunidade, ainda que essa comunidade seja o país inteiro.
Acrescento, apenas, que a posição demonstrada neste post é meramente jurídica, estando o seu conteúdo totalmente demarcado de qualquer manifestação de opinião política, e demarcando-se a minha pessoa de qualquer associação a partidos com ideais xenófobos, racistas ou quaisquer outras ideias atentatórias aos direitos básicos da pessoa humana que vêm sendo conquistados gradualmente desde o fim da Segunda Grande Guerra.
Inês Nabais do Paulo
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