Administração pública eletrónica: tratar-se-á de um fenómeno de infoexclusão/dir-se-á direito absoluto?
Atualmente, com a atual revisão do CPTA, temos a vigorar no nosso ordenamento jurídico um verdadeiro sistema de desmaterialização, que até 2019 era de mera preferência. O artigo 24º do CPTA, com a epígrafe “Processo eletrónico” é sinónimo disso mesmo. Este preceito foi o que revelou mais alterações com esta revisão, sendo que nas palavras do senhor professor TIAGO SERRÃO, podemos falar de todo um novo modelo processual.[1] A verdade é que este tema tem suscitado diversas opiniões ao longo do tempo, nomeadamente saber se uma pessoa que não sabe funcionar com este tipo de meios eletrónicos, ou seja, que não obtém nenhuma vantagem com tal adoção de procedimento se se pode dizer que se trata de uma situação de infoexclusão. Até porque pode dizer-se que tal iria contra os próprios artigos 13º da CRP e 6º do CPA, no âmbito do princípio da igualdade. Quanto a isto, pode dizer-se que esta situação é, de certa forma, colmatada com o artigo 14º/4 e 5 do CPA quando é referido que “os serviços administrativos devem disponibilizar meios eletrónicos de relacionamento com a administração pública (...)”[2] , sendo igualmente mencionado que “os interessados têm direito à igualdade no acesso aos serviços da administração, não podendo, em caso algum, o uso de meios eletrónicos implicar restrições ou discriminações não previstas para os que se relacionem com a Administração por meios não eletrónicos”.[3] Com este fenómeno da Administração Pública eletrónica estão assentes diversos princípios a seu favor. Temos o princípio da eficiência, visto que a adoção deste método melhora significativamente a qualidade dos serviços prestados, sendo isto defendido pelo artigo 81º c) da CRP. Por sua vez, o princípio da transparência é mais acautelado neste sistema, visto que vai trazer uma maior proximidade entre a Administração pública e os cidadãos, bem como transparência fundamentalmente, no sentido do direito à informação, desde logo sustentado pelo artigo 19º da DUDH e artigo 37º da CRP.[4] Trata-se, essencialmente, de “evitar a burocratização e aproximar os serviços das populações”. [5] Ora, a Portaria nº380/2017, de 19 de dezembro, mais concretamente no seu preâmbulo refere tudo isto. Postula uma “maior agilidade, celeridade e transparência da justiça”. [6] Numa primeira aceção, quanto aos articulados, parece que o artigo 24º do CPTA e o artigo 78º do CPTA, mais concretamente o nº2 deste último preceito não têm compatibilidade entre si. Todavia, o senhor professor TIAGO SERRÃO entende que se constarem do sistema informático certos requisitos da petição inicial, então os elementos do artigo 78º/2 do CPTA, mais concretamente as alíneas a), b), c), d) e h) não têm de constar, ou seja, há que fazer uma interpretação em sentido estrito. [7] A nova redação do artigo 84º do CPTA regula, de igual modo que o “envio do processo administrativo deve ocorrer por via eletrónica”. [8] Mas terá isto caráter absoluto? Na minha opinião não será bem assim. Ora, desde logo porque o artigo 10º/1 da Portaria suprarreferida menciona que se o documento no qual consta a peça processual exceder os 10 MB, então será efetuada pelos meios que dispõe o artigo 24º/5 do CPTA. A verdade é que a revisão de 2019 do CPTA trouxe consigo uma visão mais absoluta deste regime, mas não totalmente, consagrando, assim, pequenas exceções como a que foi referida anteriormente, sendo de sublinhar que tal acontecerá caso a constituição de mandatário não seja obrigatória e a parte não se encontre patrocinada. Importa, também, saber se tudo isto se trata de uma limitação puramente subjetiva, ou seja, se apenas os advogados podem aceder ao SITAF de modo a apresentar as peças processuais como parte. O acórdão do Tribunal Administrativo do Norte de 28 de junho de 2019 entendeu-o desse modo. De acordo com o senhor professor TIAGO SERRÃO é incorreto, visto que de acordo com o artigo 4º/2 da Portaria 380/2017, pode ser feito por licenciados em direito ou em solicitadoria com funções de apoio jurídico. [9] Por sua vez, quando falamos em notificações, a revisão de 2019 trouxe uma mudança significativa no respeitante ao facto de já não ser necessário o mandatário proceder à notificação. Isto ocorre, uma vez mais, devido ao facto do sistema informático, aquando a apresentação de uma determinada peça processual, assegurar tal acontecimento. É reflexo do princípio da eficiência mencionado supra, visto que deixa a parte burocrática mais afastada e procede-se a uma simplificação notória, a meu ver. Finalmente, mas não menos importante, a revisão de 2019 também trouxe consigo a consagração do registo eletrónico das decisões finais no artigo 94º/6 do CPTA. [10]
Face o exposto e dadas umas breves noções à cerca do tema, cabe um momento de reflexão. É certo que cada vez mais os cidadãos, em geral, estão recetivos à mudança. O ser humano é capaz de se adaptar a novas realidades (aliás, nos tempos de pandemia que se vive hoje em dia, torna-se muito notória a capacidade de adaptação do ser humano) e esta não é exceção. É verdade que podemos alegar que mesmo que sejam fornecidos meios aos cidadãos de modo a que possam fazer tudo de maneira informatizada, há de haver sempre falhas nesse sentido. As pessoas mais carenciadas, mais idosas ou até mesmo com deficiências cognitivas podem não ter esse acesso mais facilitado como os demais. Todavia, a meu ver, isso não poderá ser invocado como pressuposto de infoexclusão. Até porque, como foi dito, há uma margem de recetividade para os meios clássicos, por muito ténue que seja. E essas mesmas pessoas podem sempre pedir ajuda nesse sentido. Acredito que com o passar dos anos, principalmente esta geração mais adaptada aos meios digitais fará com que esta questão deixe de existir, porque há de ser uma realidade para todos, nesse sentido. Os meios digitais já se encontram, de certa forma, tão enraizados que tal fará quase como que parte do quotidiano dos cidadãos. Em suma, a administração pública eletrónica só traz consigo as diversas vantagens e manifestações de princípios importantes referidos anteriormente, bem como contribui de maneira significativa para uma economia circular que é algo que nos dias de hoje também não pode ser descurado.
Joana Leonor Leal Nunes
Subturma 7
Nº58436
[1] Conferência online "O Processo Administrativo Eletrónico" (https://www.youtube.com/watch?v=p7mgvBxUfBs#t=8m47s)
[2] Artigo 14º/4 CPA.
[3] Artigo 14º/5 CPA
[4] Um exemplo disso é a Lei nº26/2016 de 22 de agosto que refere a aprovação do regime respeitante ao acesso à informação administrativa e ambiental e de reutilização dos documentos administrativos. Vide: Filomena Isabel Silvano Maurício; Simplificação e e-Administração no âmbito do Novo Código do Procedimento Administrativo, dissertação de Mestrado Científico na Área de Especialização em Ciências Jurídico-Políticas, com menção em Direito Administrativo, Universidade de Coimbra, 2015.
[5] Duarte Amorim Pereira; Informática direito e administração a influência das tecnologias de informação e comunicação na atividade administrativa, Universidade de Coimbra, 2009, página 52 e seguintes.
[6] Tiago Serrão, Processo eletrónico e ação administrativa: breves reflexões, Revista do Ministério Público, janeiro-março 2020, página 79.
[7]Tiago Serrão, Processo eletrónico e ação administrativa: breves reflexões, Revista do Ministério Público, janeiro-março 2020, página 86.
[8]Tiago Serrão, Processo eletrónico e ação administrativa: breves reflexões, Revista do Ministério Público, janeiro-março 2020, página 90.
[9]Tiago Serrão, Processo eletrónico e ação administrativa: breves reflexões, Revista do Ministério Público, janeiro-março 2020, página 80.
[10]Tiago Serrão, Processo eletrónico e ação administrativa: breves reflexões, Revista do Ministério Público, janeiro-março 2020, página 96.
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