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A Tutela Cautelar na Impugnação de Normas Regulamentares

 O art. 112º, nº2, alínea a), in fine, do Código de Processo nos Tribunais Administrativos (doravante CPTA) contempla a suspensão da eficácia de normas, através de um meio de tutela cautelar associado à declaração de ilegalidades das normas regulamentares (providência cautelar).

Para a impugnação de normas regulamentares (um direito constitucionalmente previsto no art. 268º, nº5 da Constituição da República Portuguesa (daqui em diante, CRP) e no art. 2º, nº2, alínea h) do CPTA), a título principal, existem dois meios distintos: a declaração com força obrigatória geral e a declaração com efeitos circunscritos ao caso concreto. A primeira corresponde a uma forma de controlo abstrato e principal, com efeitos erga omnes, de normas administrativas, destinada a removerem-nas do ordenamento jurídico, podendo incidir tanto sobre normas imediatamente operativas (art. 73º, nº1, CPTA) como normas mediatamente operativas (art. 73º, nº3, alínea b) CPTA). A segunda assume-se enquanto uma forma de controlo principal e abstrato, ainda que os seus efeitos não ultrapassem a esfera do caso concreto (art. 73º, nº2, CPTA), ou seja, o tribunal é chamado a apreciar a validade da norma e, mesmo considerando-a inválida, este juízo não determinará o desaparecimento da norma do ordenamento jurídico, podendo a mesma, posteriormente, relativamente a outros casos, constituir objeto de aplicação tanto a nível administrativo como a nível jurisdicional (podendo também este mecanismo ser aplicado tanto à impugnação de normas imediatamente operativas como a normas mediatamente operativas, nos termos dos arts. 73º, nº2 e 3, alínea a) respetivamente).

O art. 130º CPTA apresenta um regime com uma estrutura dualista, admitindo que a suspensão possa ser requerida em dois tipos de situações:

O art.130º, nº1, determina que os interessados legitimados (cf. art. 73º, nºs 1 e 2 CPTA) na declaração de ilegalidade de uma norma imediatamente operativa apenas podem requerer a suspensão da eficácia dessa norma com efeitos circunscritos ao seu caso, ainda que a título principal deduzam um pedido de declaração de ilegalidade da norma com força obrigatória geral (exceto os casos previstos no nº2).

Pode, então, questionar-se o porquê desta opção do legislador. Tal significa, portanto, que nesta situação, em que o que está em causa, nesta sede cautelar, é o acautelamento da situação particular concreta de interessados individuais, a única suspensão que pode ser obtida será circunscrita ao caso. Parece que a ratio desta solução legislativa valoriza o facto de, assim, os interessados verem facilitada a existência de uma decisão jurisdicional favorável, visto que, desta forma, o tribunal não será obrigado a ponderar os efeitos, (muito) mais complexos e gravosos para a segurança jurídica de terceiros e para o interesse público, que uma suspensão das normas regulamentares para além do caso concreto poderia despoletar no ordenamento jurídico. Além disso, este artigo já confere aos lesados uma tutela cautelar, na medida em que, ao ser suspensa a eficácia com efeitos circunscritos ao caso, efetiva-se igualmente a tutela jurisdicional efetiva da respetiva pretensão, respeitando-se, assim, o disposto no art. 268º, nºs 4 e 5 CRP e no art. 2º, nº1 CPTA (sendo também este o entendimento do Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul de 18.10.2018). Assim, quem se encontrar na mesma situação que aquele que interpôs uma providência cautelar pode, igualmente, servir-se dos mecanismos de tutela jurisdicional, relativamente à tutela cautelar da sua respetiva situação, garantindo-se, claro está, na mesma medida, uma efetiva tutela jurisdicional, não sendo, de forma alguma, prejudicada pela decisão circunscrita ao caso concreto anterior.

Por seu turno, o segundo tipo de suspensão da eficácia de normas regulamentares, previsto no nº2 do mesmo artigo, permite que o Ministério Público, os titulares da ação popular (art. 9º, nº2, CPTA) e, segundo MÁRIO AROSO DE ALMEIDA, os presidentes de órgãos colegiais (art. 73º, nº1, alínea c) CPTA) peçam a suspensão, com força obrigatória geral, das normas (“qualquer norma”), mediata ou imediatamente operativas, em relação às quais deduzam “ou proponham deduzir” (cf. 130º, nº2, CPTA) pedido com vista à declaração de ilegalidade com força obrigatória geral.

Neste segundo caso, deve também atender-se à ratio da norma para que se possa entender a intenção do legislador, uma vez que aqui é já permitida a suspensão da eficácia das normas regulamentares com efeitos mais amplos, isto é, com força obrigatória geral. Tendo em conta os intervenientes a quem é permitido este tipo de atuação, podemos perceber que os mesmos não têm em vista o simples acautelamento da sua situação particular; pelo contrário, mesmo em sede de tutela cautelar, atuam em nome do interesse público ou de interesses difusos, que, em princípio, se encontram a ser desrespeitados pela vigência das normas em causa, com o objetivo de reposição da legalidade.   

Cabe ainda referir que, tratando-se a norma regulamentar de uma norma mediatamente operativa, a solução legal é, igualmente, distinta, devendo atender-se ao disposto nas alíneas do art. 73º, nº3, CPTA:

Da alínea a) emerge que, sendo necessária a existência de um ato administrativo de aplicação, deve a ilegalidade da norma ser invocada indireta e incidentalmente no processo de impugnação do ato administrativo, com vista à sua anulação. O CPTA não prevê qualquer providência cautelar dependente do controlo incidental de regulamentos, pelo que, parece ser possível concluir que, quando estiver em causa a desaplicação de normas regulamentares contemplada neste artigo, a posição dos interessados, a tutela jurisdicional efetiva e a defesa da legalidade administrativa ficam salvaguardadas com a possibilidade de suspensão de eficácia deste ato, em princípio com a providência associada ao processo principal (cf. arts 128º e 129º CPTA).

A alínea b), por sua vez, vem permitir que o Ministério Público solicite, por sua iniciativa (oficiosamente) ou através de requerimento das entidades previstas no art. 9º, nº2, CPTA, a declaração de ilegalidade das normas mediatamente operativas, com força obrigatória geral. Daí que o art. 130º, nº2, CPTA, não restrinja a sua aplicação àquelas que operam sem a existência de qualquer tipo de ato administrativo de aplicação.

 

André Fonseca – nº 58256

 

Bibliografia

SILVA, Vasco Pereira da. O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise-Ensaio sobre as Ações no Novo Processo Administrativo (Reimpressão da 2. ª edição). Coimbra: Almedina, 2016.

ALMEIDA, Mário Aroso de - Manual de Processo Administrativo. 2.ª ed. Coimbra: Almedina, 2016.

Jurisprudência

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul de 18.10.2018: Processo nº 92/18.6BELSB, disponível em www.dgsi.pt

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