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A representação do Estado pelo Ministério Público: um papel a ser excluído?

A representação do Estado pelo Ministério Público: Um papel a ser excluído?

    A representação processual do Estado é uma das atribuições do Ministério Público[1], atendendo ao preceituado no art. 4.º/1/b) do Estatuto do Ministério Público. A questão de o Ministério Público assumir a função de representação do Estado em juízo é alvo de discussão desde a Revisão Constitucional de 1997, voltando à tona aquando das últimas alterações ao CPTA. Para que nos possamos debruçar sobre este tema, é imprescindível ter em conta o âmbito objetivo, ou seja, as matérias relativamente às quais o Ministério Público é competente para representar o Estado e, por outro lado, o âmbito subjetivo, que se refere ao Estado. Antes da Reforma de 2015, o Ministério Público representava o Estado nos processos que tivessem por objeto relações contratuais e de responsabilidade civil, opção esta que resultava do artigo 11.º/2 CPTA. Ao confrontarmos esta disposição com o que dispõe o atual art. 11.º/1 CPTA deparamo-nos com o facto de esta referência às relações contratuais e de responsabilidade civil ter sido eliminada, procedendo-se, consequentemente, à ampliação do âmbito de atuação do Ministério Público em representação do Estado, levando-nos à conclusão de que o Ministério Público representa o Estado em todas as ações, independentemente do respetivo objeto[2]. No entanto, esta ampliação deve ser alvo de uma interpretação a partir de outras normas que dispõe sobre esta matéria. A este propósito, se atentarmos no que preceitua o atual art. 63.º do EMP, segundo o qual compete aos departamentos de contencioso do Estado a representação do Estado em juízo, na defesa dos seus interesses patrimoniais, este limita a representação do Estado à defesa dos interesses patrimoniais do Estado, estando em consonância com o art. 219.º/1 CRP[3], que tem sido interpretado restritivamente no que respeita à representação do Estado no âmbito do contencioso administrativo, no sentido de a limitar à defesa dos interesses patrimoniais do Estado[4]. Deste modo, parece que o âmbito objetivo da atuação do Ministério Público em representação do Estado circunscreve-se à defesa dos interesses patrimoniais do mesmo. No que toca ao âmbito subjetivo, cumpre questionar que entidades é que o Ministério Público representa. A doutrina tem considerado que o Ministério Público só representa o Estado e não outras entidades públicas[5], atendendo, sobretudo, ao disposto no art. 51.º ETAF, que só atribui ao Ministério Público a representação em juízo do Estado. No entanto, e apesar de o art. 2.º do Estatuto do Ministério Público também prever esta mesma solução, o atual art. 4.º/1/b) do Estatuto refere que compete ao Ministério Público representar não só o Estado, mas também as regiões autónomas e as autarquias locais, e o art. 9.º, segundo o qual o Ministério Público tem intervenção principal nos processos quando representa o Estado e quando representa as regiões autónomas e as autarquias locais. O argumento para a exclusão das Regiões Autónomas e das autarquias locais do âmbito de representação pelo Ministério Público, através do confronto destes preceitos, é o de que o ETAF apresenta uma norma posterior e especial face ao EMP, implicando uma derrogação dos preceitos do EMP no que se refere às regiões autónomas e às autarquias locais. Neste sentido, a representação do Ministério Público circunscreve-se ao Estado, mas que Estado é este? No contexto do contencioso administrativo, parece que o Estado aqui em causa é o Estado-Administração, sendo defendido que só o Estado em sentido restrito é representado pelo Ministério Público, e não o Estado-coletividade[6]

    A par da competência para representar o Estado, o art. 219.º/1/in fine CRP também determina que compete ao Ministério Público defender a legalidade democrática, o que evidencia a polifuncionalidade[7] da atuação do Ministério Público. Neste sentido, cabe ao Ministério Público promover a ação pública, intentando ações em defesa da legalidade e de determinados interesses coletivos essenciais. Neste sentido, dispõe o art. 9.º/2 CPTA que o Ministério Público tem legitimidade para propor e intervir, nos termos previstos na lei, em processos principais e cautelares destinados à defesa de valores e bens constitucionalmente protegidos. Assim, o Ministério Público desempenha, simultaneamente, funções de índole objetivista, através da proteção de certos fins e interesses através da defesa da legalidade democrática e dos valores referidos no artigo 9.º/2 CPTA, e funções de índole subjetivista, que se centram na defesa de uma parte, na qual se inscreve a representação do Estado. Esta simultaneidade de funções é temperada pela circunstância de o Estado prosseguir o interesse público e não interesses particulares, não significando isto que o interesse público seja sempre coincidente com o princípio da legalidade. Nas situações em que a atuação do Estado é ilegal ou de duvidosa legalidade, o Ministério Público encontra-se situado no cruzamento entre a prossecução do interesse público através da representação do Estado e a defesa da legalidade democrática[8]. Efetivamente, numa ação, pode acontecer que o Estado seja demandado e o Ministério Público entenda que a defesa do Estado põe em causa a legalidade.

    Para alguns autores, esta problemática encontra solução no atual art. 93.º EMP, considerando este preceito suficiente para precaver este tipo de situações. Existindo um conflito entre a dimensão objetiva da sua atuação, onde se insere a defesa da legalidade, e a dimensão subjetiva, na qual se insere a representação do Estado, alguns autores consideram que a defesa da legalidade deve prevalecer nos casos em que seja evidente que a pretensão do Estado é manifestamente ilegal, devendo o Ministério Público abster-se de representar o Estado, aplicando-se, por analogia, o disposto no artigo 93.º EMP. Por outro lado, nos casos de fundadas dúvidas quanto à ilegalidade da pretensão do Estado, o Ministério Público deve deixar ao juiz a tarefa de determinar se as pretensões do Estado devem, de facto, prevalecer ou não, pelo que o Ministério Público deve manter a função de representação do Estado, uma vez que a competência para efetuar um juízo definitivo quanto à legalidade do ato incumbe apenas ao juiz[9]. Aliás, o facto de o Ministério Público invocar a existência de uma ilegalidade que lhe impede o exercício da sua função de representação do Estado pode acarretar um prejuízo para a posição deste, visto que traduz um juízo de valor sobre a sua pretensão[10]. A meu ver, o artigo 93.º EMP assume um papel limitado e residual na resolução de contradições entre a função de defesa da legalidade e a função de representação do Estado, na medida em que o Ministério Público apenas pode recorrer ao referido preceito em casos de manifesta ilegalidade, não sendo esta, consequentemente, a melhor solução, ao deixar de parte as situações em que há apenas uma mera dúvida quanto à legalidade da pretensão. Neste sentido, há quem sustente que o Ministério Público deve deixar de ter a função de representante do Estado no caso de este ter de assumir posições não compatíveis com a legalidade, devendo ser dada ao Estado a possibilidade de escolher o seu representante de entre um advogado solicitado à Ordem dos Advogados ou um funcionário da Administração com competências suficientes para representar a Administração. Efetivamente, as atuações do Ministério Público têm de se pautar por critérios de legalidade, imparcialidade e objetividade, pelo que, em caso de contradição, a função de representação do Estado deve sempre ceder.

    Em consonância com alguma doutrina, parece-me que a melhor solução seria retirar ao Ministério Público a função de representação do Estado[11], devendo este preocupar-se exclusivamente com a defesa da legalidade democrática, precisamente para evitar eventuais situações de conflito entre as funções de defesa da legalidade e de defesa do Estado. Neste sentido, o mais adequado seria criar um corpo próprio de advogados com a exclusiva função de exercer a representação do Estado, substituindo o Ministério Público nas ações propostas contra este [12] e garantindo, deste modo, a resolução destes conflitos. Nas palavras de VIEIRA DE ANDRADE, atendendo à configuração atual do Ministério Público, na sequência da “desgovernamentalização” do Ministério Público e pelo facto de a evolução do processo administrativo ser no sentido de um processo de partes, justifica-se que ao Ministério Público apenas se atribua a função de defesa da legalidade em detrimento da representação do Estado[13]. Neste sentido, cumpre assinalar a alteração do art. 11.º/1 CPTA na reforma de 2019, que deixou expresso que a representação do Estado pelo Ministério Público é uma possibilidade e não uma obrigatoriedade[14], na medida em que a representação do Estado pode ser assegurada por outras vias, nomeadamente através da constituição de advogado. A consagração deste regime de flexibilidade neste domínio, apesar de traduzir uma alteração ligeira, é um passo significativo em direção à exclusão do Ministério Público da representação do Estado, na medida em que essa representação, no regime anterior, era configurada de modo perentório, passando-se a configurá-la como uma mera possibilidade e permitindo ao Estado encontrar, para cada caso, a solução que lhe pareça mais adequada. No entanto, é crucial a consagração de um regime que preveja a efetiva exclusão do Ministério Público neste domínio ao invés de uma possibilidade de representação do Estado, colocando um ponto final nos eventuais conflitos a que este quadro legislativo conduz.

Sofia Sousa

4º ano, turma A, subturma 7

Nº58441

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[1] Mário Aroso de Almeida, Carlos Alberto Fernandes Cadilha, Comentário ao Código de processo nos tribunais administrativos, Almedina, Coimbra, 2005, p. 86.

[2] Ricardo Pedro, A representação do Estado pelo Ministério Público. In: Comentários à Legislação Processual Administrativa, Vol. I, 5ªedição, AAFDL, 2020, p. 787. 

[3] Jorge Miranda, Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, III, Coimbra Editora, 2007, p. 216.

[4] Alexandra Leitão, A representação do Estado pelo Ministério Público nos tribunais administrativos, p. 191.

[5] Alexandra Leitão, A representação do Estado pelo Ministério Público nos tribunais administrativos, p. 203; no mesmo sentido, Mesquita Furtado, A intervenção do Ministério Público no contencioso administrativo, p. 771.

[6] Mesquita Furtado, A intervenção do Ministério Público no contencioso administrativo, p.; no mesmo sentido, Alexandra Leitão, p. 203.

[7] Francisco Narciso, O Ministério Público na justiça administrativa, in: Revista do Ministério Público, Ano 31, n.º 122, 2010, p. 95.

[8] Cláudia Alexandra dos Santos Silva, O ministério público no atual contencioso administrativo português. In: Revista e-Pública, Vol. III n.º1, Lisboa, abril, 2016, p. 180.

[9] Sérvulo Correia,  A  reforma do contencioso administrativo e as funções do Ministério Público. In: Estudos em Homenagem a Cunha Rodrigues, Vol. I, Coimbra Editora, Coimbra, 2001, pp. 317 e 318.

[10] Alexandra Leitão, A representação do Estado pelo Ministério Público nos tribunais administrativos, p. 199 e 200.

[11] Neste sentido, Tiago Serrão, A representação processual do Estado no Anteprojeto de revisão do Código de Processo nos Tribunais Administrativos, in: O Anteprojeto de Revisão do CPTA e do ETAF em debate, AAFDL, Lisboa, 2014, pp. 230 e 237; Alexandra Leitão, A representação do Estado pelo Ministério Público nos tribunais administrativos, p. 200.

[12] Mário Aroso de Almeida, Manual de Processo Administrativo, 4ªedição, Almedina, Coimbra, 2020, p. 221.

[13] José Carlos Vieira de Andrade, A Justiça Administrativa (Lições), 17ªedição, Almedina, Coimbra, 2020, p. 147.

[14] Ricardo Pedro, A representação do Estado pelo Ministério Público. In: Comentários à Legislação Processual Administrativa, Vol. I, 5ªedição, AAFDL, 2020, p. 796. 

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