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“A atuação do Ministério Público no panorama atual do contencioso administrativo português”

 

Introdução

Neste trabalho irei abordar qual o papel do Ministério Público no atual contencioso administrativo português e possíveis problemas e/ou conflitos que surgem com a atuação do mesmo.

Ultimamente com a reforma do contencioso administrativo, o Ministério Público tem vindo a assumir poderes cada vez mais amplos. Desde logo, compete ao Ministério Público representar o Estado, quando estão em causa interesses patrimoniais ou não patrimoniais que se identificam com os interesses da comunidade e com o interesse público (tais como saúde pública, urbanismo, ordenamento do território, ambiente, qualidade de vida, património cultural e bens do Estado, das Regiões Autónomas e das autarquias locais); defender a legalidade democrática e promover a realização do interesse público.

A evolução do Ministério Público

             Fazendo agora uma pequena análise sobre a evolução do Ministério Público ao longo dos tempos, cabe primeiramente esclarecer que esta figura apareceu desde logo cedo no contencioso administrativo sob um ponto de vista mais funcional do que orgânico.

             Em 1832 o Ministério Público funcionava junto dos tribunais comuns cumprindo-lhe expor por escrito uma opinião fundamentada, a qual deveria ser mencionada no final pelo relator do processo. Em 1896 o papel do Ministério Público, relativamente aos processos do contencioso administrativo, consistia na promoção do cumprimento das leis, ou seja, tinha o poder de recorrer daqueles que entendessem não respeitar a legalidade. Com isto, podemos concluir que no século XIX havia já uma certa complexidade no que diz respeito ao papel do Ministério Público. Ou seja, em função dos graus de jurisdição existia um dualismo orgânico na medida em que de um lado tínhamos agentes diretamente provindos da Administração, e do outro lado magistrados inseridos num corpo especializado e hierarquizado. Na Constituição de 1933 existiu uma referência ao Ministério Público como representante do Estado junto dos tribunais.

             Em 2004, com a entrada em vigor do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (ETAF) e do Código do Processo dos Tribunais Administrativos (CPTA), foi criado um novo paradigma de justiça administrativa no sentido da subjetivação do contencioso administrativo.

             Segundo Gomes Canotilho e Vital Moreira “O Ministério Público é um dos órgãos constitucionais integrados na organização dos tribunais que mais dúvida oferece quanto à sua posição constitucional. Tendo em conta a sua evolução histórica é seguro afirmar que o paradigma de Ministério Público acolhido pela CRP de 1976 é o de um órgão da justiça independente e autónomo, subtraído à dependência do poder executivo, e erguido à categoria de magistratura, com garantias próprias aproximadas das dos juízes”.

Previsão legal

No que toca ao enquadramento normativo, as referências ao Ministério Público são várias e encontram-se dispersas por vários e distintos diplomas normativos. São estes o ETAF, na versão do DL nº214-G/2015; CPTA, na verão do DL nº214-G/2015; Estatuto Ministério Público (EMP, Lei 47/86 na versão da Lei 9/2011); Código de Processo Civil (CPC) no art.24.º/1; DL nº83/95 sobre o Direito de participação procedimental e de ação populares; Lei da Organização do Sistema Judiciário (LOSJ, Lei nº62/2013 na versão Lei nº42/2013; Constituição da República Portuguesa (CRP), mais especificamente o seu artigo 219.º.

Funções do Ministério Público

             Relativamente às funções do Ministério Público há que, primeiramente, fazer a distinção entre a intervenção principal e a intervenção acessória do Ministério Público. Quanto à intervenção principal o Ministério Público atua com uma legitimidade própria para a defesa de valores e bens colocados à sua tutela (tanto pode representar o autor ou o réu). Já quanto à intervenção acessória o Ministério Público exerce funções de defesa da independência e da legalidade na função jurisdicional.

             Para Mesquita Furtado, os poderes conferidos ao Ministério Público são sistematizados por poderes de representação de outros sujeitos processuais, poderes de iniciativa processual em nome próprio e poderes de intervenção em processos intentados por outros sujeitos processuais. Para Sérvulo Correia as funções do Ministério Público são de três ordens, são estas a de ação pública, coadjuvação do Tribunal na realização do Direito e patrocínio judiciário do Estado e de outras pessoas representadas por imperativo legal.

             Para Gomes Canotilho e Vital Moreira as funções do Ministério Público podem agrupar-se em quatro áreas, são estas: a representação do Estado (funciona como uma espécie de Advogado); a defesa da legalidade democrática; a defesa dos interesses de determinadas pessoas mais carenciadas de proteção (por exemplo menores, trabalhadores) e, por fim, o exercício da ação penal. Passamos agora a analisar de forma mais criteriosa as 3 primeiras funções do Ministério Público enunciadas primeiramente.

            

(i)              Representação do Estado

Acerca da representação do Estado pelo Ministério Público, nomeadamente nos tribunais (nas causas em que ela seja parte) existem vários preceitos dispersos por diversos diplomas normativos, tais comos: art.51.º/1 e 2 ETAF; art.11.º/1 CPTA; arts.1.º, 3.º/1, 4.º, 5.º/1 e 53.º/a) EMP; art.24.º/1 e 2 CPC; art.16.º/1 do DL nº83/95; art.º3.º/1 LOSJ; art.219.º/1 CRP. A lei só atribui ao Ministério Público a representação em juízo do Estado e não de outras pessoas coletivas públicas.

Ainda relativamente à representação do Estado por parte do Ministério Público, existem duas questões que devem ser esclarecidas são estas: quando é que o Ministério Público deve representar o Estado e, qual o tipo de representação aqui em causa. Quanto ao primeiro ponto, e com  a recente reforma de 2014, o art.11.º tem a seguinte redação: “Nos tribunais administrativos é obrigatória a constituição de mandatário, nos termos previstos no Código de Processo Civil, podendo as entidades públicas fazer-se patrocinar em todos os processos por advogado, solicitador ou licenciado em direito ou em solicitadoria com funções de apoio jurídico, sem prejuízo da representação do Estado pelo Ministério Público.” Relativamente à questão de saber de que tipo de representação se trata (orgânica, legal ou mero patrocínio judiciário), tem-se entendido que a representação do Estado pelo Ministério Público se trata de uma representação orgânica, na medida em que é um órgão do Estado e trata da defesa da legalidade democrática. Assim, não se trata de patrocínio, o Ministério Público não é um mero mandatário, ele atua de forma imparcial e isenta, não comandado por qualquer órgão específico do aparelho do Estado.

(ii)            Defesa da legalidade democrática

Aqui, na defesa da legalidade democrática, o Ministério Público intervém no contencioso administrativo e fiscal e também na fiscalização da constitucionalidade dos atos e comportamentos das autoridades públicas e das entidades privadas com poderes públicos (segundo os princípios da legalidade e juridicidade). Assim, o que está em causa é a eliminação, por parte do Ministério Público, de atos jurídicos ilegais. Esta função está presente nos art.219.º/1 in fine CRP; art.51.º ETAF; art.1.º EMP; art.3.º/1 da LOSJ; art.16.º/1 do DL 83.º/95. Assim, e de forma a sistematizar alguns dos poderes do Ministério Público, este tem legitimidade ativa enquanto “ator público” nas seguintes matérias:

¬  Impugnação de atos (art.55.º/1/b) CPTA);

¬  Posição de autor no exercício da ação pública (art.62.º/1 CPTA);

¬  Ações de condenação (art.9º/2 e art.68.º/1/b) CPTA);

¬  Questão de ilegalidade (art.73.º/1/3 e 4 e art.77.º/1 CPTA);

¬  Contratos (art.77-A/1/b) e art.77-A/3/c));

¬  Intimação (art.104.º/2 CPTA);

¬  Providências Cautelares (art.112.º/1 e art.113.º/5 CPTA);

¬  Suspensão (art.130.º/2 CPTA);

¬  Recursos (art.141.º/1 e art.152.º/1 CPTA);

¬  Sentença (art.155.º/1, art.9.º/2, art.164.º/1 e art.176.º/1 CPTA);

¬  Resolução de Conflitos (art.136.º CPTA);

¬  Regiões Autónomas e autarquias locais (art.9.º/2 CPTA).

 

Segundo o Professor Vasco Pereira da Silva, “No que respeita à ação pública, ela constitui atualmente o principal poder de intervenção processual do Ministério Público, na sequência da reforma do Contencioso Administrativo, que revalorizou o respetivo papel do sujeito processual em detrimento da sua intervenção como “auxiliar do juiz”.

 

(iii)           Ministério Público como amicus curiae

Esta função do Ministério Público consiste na defesa de interesses de determinadas pessoas mais carenciadas de proteção. O Ministério Público auxilia o tribunal a pronunciar-se sobre o mérito da causa quando esta diga respeito a direitos fundamentais dos cidadãos, de interesses públicos especialmente relevantes ou de alguns valores e bens referidos no nº2 do art.9.º. Nos termos do art.85.º/2 e 3 do CPTA, o Ministério Público pode também invocar causas de invalidade diferentes das que tenham sido arguidas na petição, assim como solicitar a realização de diligências instrutórias. Por fim, ao abrigo do art.146.º/1 CPTA pode pronunciar-se em sede de recurso quando este não tenha sido parte na ação.

Conflito entre a ação pública do Ministério Público e a representação do Estado

             Como já foi referido anteriormente, o panorama legal vigente confere funções ao Ministério Público de representação do Estado, defesa de legalidade democrática e demais interesses que a lei determina, ao abrigo das quais este exerce poderes de representação, de intervenção própria e de intervenção em processos intentados por outros sujeitos. Contudo, isto pode gerar conflitos na medida em que, por vezes, o Estado na sua atuação, pode também violar normas legais e portanto Direito vigente, o que pode despoletar problemas de difícil resolução para este órgão. Ou seja, por vezes, o interesse público perspetivado pelo Estado pode não ser coincidente com o princípio da legalidade e, nestes casos, o Ministério Público pode encontrar-se num dilema: ou segue essa prossecução do interesse público ou segue o caminho da defesa da legalidade democrática. Para estes casos existem duas soluções distintas: ou se recorre ao art.69.º do EMP; ou o Ministério Público nestas situações limite deixa de representar o Estado, e é o próprio Estado que escolhe o seu representante (um advogado solicitado à Ordem dos Advogados, ou um funcionário da Administração com as competências suficientes para tal representação). Para a maioria dos autores, todas as atuações do Ministério Público têm de se pautar por critérios de legalidade, imparcialidade e objetividade o que nos leva a concluir que em caso de contradição deve ceder a função de representação do Estado. Assim, quando a pretensão do Estado seja manifestamente ilegal, o Ministério Público não deve representá-lo respeitando assim o art.69.º do EMP.

Conclusão

O Ministério Público é visto como uma figura indispensável no processo administrativo na medida em que não só faz com que este seja mais justo, como também serve de garante de direitos fundamentais e de valores constitucionalmente protegidos de cada sujeito, ou até mesmo da própria comunidade. Assim, podemos concluir que o Ministério Público para além de controlar o cumprimento da lei também defende os interesses dos particulares e da comunidade.

Bibliografia

AROSO DE ALMEIDA, Mário, Manual de Processo Administrativo, Coimbra, Almedina, 2019

 

GOMES CANOTILHO, VITAL MOREIRA, Fundamentos da Constituição, Coimbra, Coimbra Editora, 1991

ROSÁRIO MESQUITA, Leonor, A intervenção do Ministério Público no contencioso Administrativo, Estudos em memória do Conselheiro Artur Maurício, Coimbra, 2014

 

SÉRVULO CORREIA, José, A reforma do contencioso administrativo e as funções do Ministério Público, Estudos em homenagem a Cunha Rodrigues, Vol. I, Coimbra, 2001

 

VIERA DE ANDRADE, José, A justiça administrativa: lições, Coimbra, Almedina, 2009

 

PEREIRA DA SILVA, VASCO, O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise- Ensaio sobre as Acções no Novo Processo administrativo, 2ª ed., 2009, Almedina

 

José Maria Borges, nº57057

Turma Dia, Subturma 7

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