Âmbito de jurisdição, um problema de responsabilidade civil extracontratual das concessionárias privadas
A temática da responsabilidade civil
extracontratual do estado e demais entidades, foi desde o surgimento do
contencioso administrativo um tema importante e problemático. Partindo do caso
de Àgnes Blanco[1] que Vasco Pereira da Silva[2] considera ser um dos traumas da infância
difícil do contencioso, à passagem desta matéria para a jurisdição dos
tribunais administrativos no ETAF que levantou uma série de divergências e à
consagração de um regime de responsabilidade civil extracontratual tardio. Foi a reforma de 2004 que
com a consagração do ETAF(lei 13/2002) atribuiu jurisdição aos tribunais
administrativos no contencioso da responsabilidade civil extracontratual, mas apesar de constar na proposta o diploma legal relativo ao regime da responsabilidade civil extracontratual, a sua
consagração só ocorreu em 2008 com a lei 67/2007(doravante RRCEE). Com a revisão
de 2015 as alíneas relativas à responsabilidade civil extracontratual passaram
a corresponder às alíneas f), g), h) do art 4º n1 do ETAF. Deste modo, com a
reforma do contencioso administrativo em 2004, conforme Vasco Pereira da Silva
alude, atribui-se competência à jurisdição administrativa para apreciar todas
as questões de responsabilidade civil extracontratual das pessoas coletivas de
direito publico pondo termo ao trauma da dualidade de jurisdições, nomeadamente, através
das alíneas f) e g). Contudo, na alínea h)[3] temos uma extensão das entidades contra quem
pode ser intentada uma ação de responsabilidade civil extracontratual nos
tribunais administrativos e será, sobre esta alínea que nos debruçaremos,
especialmente, quando esteja em causa entidades privadas.
Importa saber que até à revisão de 2015
mencionava-se “sujeitos privados”, tendo sido substituída pela expressão
“demais sujeitos” sem referir se públicos ou privados. No entanto, apesar desta
supressão é percetível que o legislador procurou estender a responsabilidade
civil extracontratual a entidades que, independentemente da sua natureza, se
encontrem sujeitas ao RRCEE. Todavia, será esta alínea de aplicação imediata às entidades
privadas ou depende de lei substantiva? Vasco Pereira da Silva e Viera de
Andrade entendem que é de aplicação imediata sendo o argumento utilizado, para
além da referência ao art 4/1-d ETAF redação anterior a 2015, o facto da
administração recorrer a entidades privadas para a auxiliar na prossecução da
atividade administrativa e nesses casos, como colaboram no exercício da função
administrativa não se exige outras normas. Em sentido contrário, Mário Aroso de
Almeida e Freitas do Amaral defendem que para esta norma ter alcance prático é
necessário que existam normas substantivas que prevejam a aplicação de tal
regime a entidades privadas. Sendo esta última posição a adotada na maioria da jurisprudência
e a que melhor se compreende. Como explicado por Tiago Serrão[4] e Nuno Miguel Marques[5] a interpretação do art4/1-h ETAF tem de ser conjugado com a
norma substantiva do art 1º/5 RRCEE, encontrando-se estes preceitos “umbilicalmente
ligados”; visto que subjacente à feitura de tal alínea na reforma do
contencioso administrativo era suposto ser aprovado em conjunto o RRCEE, mas
como explicado anteriormente só em 2008 este é consagrado. Através deste
elemento histórico é percetível que para que se aplique tal alínea a entidades
privadas exige-se uma conjugação com o art 1º/5 RRCEE[6]. Uma vez que sem tal articulação muitos litígios
ficariam submetidos aos tribunais judiciais só pelo facto de a entidade ser
privada, o que efetivamente ocorreu até 2008 aquando da apreciação de ações de
responsabilidade de concessionárias por acidentes. O que demonstra que na prática
não se concebe como se submeteria tais litígios à jurisdição administrativa, só
pelo facto de colaborarem com a administração, sem uma norma que os submetesse
a tal regime.
Partindo desta precisão, a
questão que mais tem assolado os tribunais deve-se a responsabilidade civil
extracontratual destas entidades privadas, porque dada a sua natureza privada
há uma dificuldade em compreender quando estas entidades serão julgadas nos tribunais
administrativos e não nos judiciais. Principalmente, quando estamos perante contratos
de concessão atribuídos a entidades privadas em que é frequente ocorrer conflitos
negativos de jurisdição, e consequentemente se atrasam indemnizações a
particulares que nos fazem questionar se efetivamente o trauma de Agnés Blanco
se encontra superado. Deste modo, recorreremos inicialmente a um acórdão do Tribunal
da Relação de Évora para compreender como têm os tribunais judiciais apreciado
tais litígios e posteriormente, como se tem resolvido os conflitos negativos de
jurisdição. Assim, pelo que podemos observar no acórdão em apreço o litígio surge
devido a um acidente de viação que ocorre pelo rebentamento do pneu do veículo
do Autor em virtude do desnivelamento de uma junta de dilatação na A1, vindo
este peticionar à Brisa Concessão Rodoviária S.A uma indemnização a titulo de
responsabilidade civil extracontratual, e para tal intenta uma ação declarativa
num tribunal judicial. O tribunal da relação considera-se incompetente para
dirimir tal litígio, alegando que pertence à jurisdição administrativa. O
argumento invocado neste sentido é que pela aplicação do art 4/1-h) ETAF em
conjugação com o art1º/5 RRCEE apesar da brisa ser uma entidade privada está
sujeita ao RRCEE. Prosseguindo que para apurar os termos em que é aplicável às
pessoas coletivas privadas tal regime, extrai-se da interpretação do art1/5 RRCEE
os fatores em que se está perante o conceito de atividade administrativa pressupondo
para tal a verificação de um deles: 1) se atuou no exercício de prerrogativas
de direito publico; 2)ou, se a atividade se encontra regulada por disposições
ou princípios de direito administrativo. Assim, clarifica que pela existência do contrato
de concessão entre a brisa e o Estado, e ao aplicar-se-lhe o DL nº294/97 no
qual se encontram as bases de concessão, e nas quais se inserem tais deveres de
manutenção. Conclui-se no acórdão: “que o Estado delegou determinadas funções de
natureza pública, cabendo à concessionária a execução de tarefas que integram o
serviço público, encontrando-se a respetiva atuação regulada por disposições ou
princípios de direito administrativo, pelo que se encontram preenchidos os
pressupostos da respetiva submissão ao regime específico da responsabilidade do
Estado e demais pessoas coletivas de direito público previstos no n.º 5 do
artigo 1.º do citado regime.” Pelo que considera que ao estar em causa
um pedido de indemnização dirigido contra a concessionária devido a danos
ocorridos na mesma e o incumprimento de deveres decorrentes do contrato de
concessão seria
competente a jurisdição administrativa porque o litígio preenche a previsão da
alínea h) do art 4/1 ETAF.
Contudo, apesar desta conclusão do tribunal judicial, os
tribunais administrativos, por vezes, tendem em situações semelhantes a
considerar-se incompetentes. Resultando num conflito negativo de jurisdições,
tal acontecimento é passível de verificação numa série de acórdãos do tribunal
de conflitos, mas por escassez de espaço para abordar tais acórdãos
limitar-nos-emos a indicar que em questões semelhantes, como um acidente
ocasionado devido ao atravessamento de um animal[7], ou por uma mancha de óleo[8], ou outros objetos[9] na via, ou seja, quando esteja em causa danos que decorram
de deveres da concessionária advenientes do contrato de concessão. O argumento
utilizado pelos tribunais administrativos para não se considerarem competentes
para julgar tais conflitos deve-se à natureza privada das entidades (porque
consideram que não atuam com as prerrogativas de direito publico)e que por
isso, se afasta o art 4/1-h ETAF. Apoiando-se numa interpretação restritiva
efetuada pela jurisprudência minoritária do tribunal de conflitos[10] que considera não se enquadrar juridicamente na previsão do
art 1/5 RRCEE tais situações. Tal interpretação restritiva leva a que só se
abranja as entidades privadas que atuem “no exercício de prerrogativas de poder
público”, excluindo-se as que se incluem no segundo fator “atividades reguladas
por disposições ou princípios de direito administrativo”. Mas esta exclusão
deve-se ao facto de se considerar que tais deveres de “vigilância/limpeza/manutenção da via em
condições de segurança para poder ser devidamente utilizada, se inserem nos atos
correntes da sua atividade enquanto entidade privada e não no uso de poderes ou
prorrogativas de autoridade, afigura-se que estamos no âmbito do direito
privado.”[11] Compreende-se
o facto de tais deveres não consubstanciarem numa prerrogativa de autoridade
apesar de versarem sobre bens de domínio publico do estado, mas sim numa
operação material[12] que
se encontra regulada por disposições ou princípios de direito administrativo, sendo
também este o entendimento maioritário na jurisprudência. Mas já não se
compreende tal interpretação restritiva porque o art 1/5 RRCEE adota a conjunção
disjuntiva “ou”, estando dependente da verificação de um desses pressupostos
alternativos a aplicação do regime de responsabilidade.
Apesar desta conclusão infeliz de
alguns tribunais administrativos devido a uma interpretação estranha ao sentido
do art 1/5 RRCEE, retira-se dos acórdãos referidos como exemplo que a conclusão
do tribunal de conflitos vai no sentido de a competência pertencer aos administrativos,
parecendo ser este o entendimento maioritário e mais recente da jurisprudência.
Mas averiguemos, inserindo-se estas situações no art 4/1-h ETAF este tem de ser
interpretado em conjunto com art 1/5 RRCEE. Bastando para tal, que a atuação ou
omissão das entidades privadas que originam a responsabilidade civil extracontratual
não decorram no âmbito do seu estrito estatuto de pessoas coletivas
privadas, mas que se insiram numa gestão publica. Assim, ainda é importante a
distinção entre gestão privada e publica[13],
mas apenas quando estejamos perante entidades privadas. Como observado à luz do
art1/5 RRCEE constituem fatores determinativos do conceito de atividade
administrativa: 1) o exercício de prerrogativas de direito publico ;2) e que as
atividades sejam reguladas por disposições ou princípios de direito
administrativo. Inserindo-se num destes fatores, estaremos perante uma gestão pública.
Em suma, em litígios que envolvam concessionárias na base está um contrato de
concessão celebrado entre a entidade privada e o Estado, mas tal contrato não
significa “que a respectiva concessão a uma entidade privada determine
a perda da sua natureza pública administrativa, pois que a mesma se mantém
regulada e fiscalizada à luz de normas jurídicas administrativas inscritas no
próprio contrato”[14]. Assim, quando estamos perante
uma concessão temos de aferir se efetivamente esta atua como se fosse uma
entidade publica em substituição do estado, na execução de tarefas
administrativas que se alicerçam no contrato de concessão, o que demonstra que
temos que recorrer em termos substantivos p.ex às bases de concessão para aferir
se efetivamente esse dever decorre das mesmas. Em caso positivo as concessionárias
são de facto entidades de natureza privada, mas que ao terem a seu encargo a
prossecução de interesses públicos que lhe são transferidos pela administração
pública estão sujeitos aos princípios de direito administrativo e por isso,
inseridas na previsão do art 1/5 RRCEE. Por sua vez este complementa o art 4/1-h)
pertencendo, assim, à jurisdição administrativa a apreciação de litígios relativos
a responsabilidade civil extracontratual mesmo que a concessionária
seja uma entidade privada. Conclusão contrária desrespeitará o expresso no art4/1-h)
ETAF e art1/5 RRCEE.
Bibliografia:
ALMEIDA, Mário Aroso de, “Manual de Processo Administrativo”, Almedina,
4ªedição, 2020;
ANDRADE, José Carlos Vieira de,“A justiça Administrativa (lições)”,
Almedina, 10ª edição, 2009;
GOMES, Carla Amado; NEVES, Ana F.; SERRÃO, Tiago (coord.), “Comentários
à legislação processual administrativa”, Vol. I, AAFDL, 5ºedição, 2020;
SILVA, Vasco Pereira da, “O Contencioso no Divã da Psicanálise”, Almedina,
2ªedição, 2009;
Web-grafia:
MARQUES, Nuno Miguel -“Casa tomada”? Da competência jurisdicional
sobre litígios relativos a acidentes rodoviários ocorridos em concessões
rodoviárias- Revista da ordem dos advogados ANO 79, 2019
SERRÃO, Tiago – “Responsabilidade civil extracontratual de
concessionários de obras públicas e jurisdição administrativa, Anotação ao
Acórdão do Tribunal de Conflitos, de 20 de Janeiro de 2010(proc. 025/09)” -
Responsabilidade Civil Extracontratual Das Entidades Públicas - Anotações de
Jurisprudência, ICJP 2013
Maria Ana Conceição
TA Sub7
Nº58526
[1]
Num breve resumo, Ágnes Blanco com 5 anos foi atropelada por um vagão de uma
empresa publica de tabaco francesa, a indemnização devida aos país a titulo de
responsabilidade civil extracontratual fora-lhes negada porque os tribunais
judiciais não podiam julgar a administração e o Conselho de Estado só julgava
atos administrativos e sendo uma relação entre particulares e administração não
havia lei, assim, nenhum dos tribunais se declarou competente, levando a um conflito
negativo de jurisdições. Relativamente ao trauma atinente a Àgnes Blanco e como
apreendido pelas aulas do Professor Vasco Pereira da Silva é com este episodio
que surge a necessidade de um direito administrativo autónomo e de um contencioso
adequado.
[2]
Vasco Pereira da Silva, o Contencioso Administrativo no Divã da Psicanalise,
2ª edição 2009 Almedina
[3]
“h) Responsabilidade civil
extracontratual dos demais sujeitos aos quais seja aplicável o regime
específico da responsabilidade do Estado e demais pessoas coletivas de direito
público;”
[4]
Tiago Serrão - Responsabilidade civil extracontratual de concessionários de
obras públicas e jurisdição administrativa, Anotação ao Acórdão do Tribunal de
Conflitos, de 20 de Janeiro de 2010(proc. 025/09)- Responsabilidade Civil
Extracontratual Das Entidades Públicas - Anotações de Jurisprudência, ICJP 2013
[5]
Nuno Miguel Marques-“Casa tomada”? Da competência jurisdicional sobre
litígios relativos a acidentes rodoviários ocorridos em concessões rodoviárias-
Revista da ordem dos advogados ANO 79, 2019
[6]
“As disposições que, na
presente lei, regulam a responsabilidade das pessoas colectivas de direito
público, bem como dos titulares dos seus órgãos, funcionários e agentes, por
danos decorrentes do exercício da função administrativa, são também aplicáveis
à responsabilidade civil de pessoas colectivas de direito privado e respectivos
trabalhadores, titulares de órgãos sociais, representantes legais ou
auxiliares, por acções ou omissões que adoptem no exercício de prerrogativas de
poder público ou que sejam reguladas por disposições ou princípios de direito
administrativo”
[7] http://www.dgsi.pt/jcon.nsf/-/C487965F12336647802581070033DC0C
Acórdão Tribunal dos conflitos de 05-04-2017 – Proc.026/16 e http://www.gde.mj.pt/jcon.nsf/35fbbbf22e1bb1e680256f8e003ea931/d78600cf8ee13b038025805f003bb1b1?OpenDocument
Acórdão tribunal dos conflitos de 20-10-2016 Proc. 021/16
[8]http://www.dgsi.pt/jcon.nsf/35fbbbf22e1bb1e680256f8e003ea931/6fa011cb3f04a53f802581fa0041bc4d?OpenDocument&Highlight=0,responsabilidade,extracontratual,estado,entidade,privada Acórdão do Tribunal dos Conflitos de 23-11-2017 – Proc.
Nº 010/17
[9] Um pneu- Acórdão tribunal dos conflitos de 11-01-2017—proc.
037/15 http://www.dgsi.pt/jcon.nsf/35fbbbf22e1bb1e680256f8e003ea931/615d5d24912ca2c4802580ad005610b1?OpenDocument&Highlight=0,responsabilidade,extracontratual,estado,entidade,privada
e um objeto metálico- Acórdão tribunal dos conflitos de 12-03-2015—proc. 049/14
http://www.dgsi.pt/jcon.nsf//E89DE3B3BDCC407280257E0E00560828
[10]
A título de exemplo Ac. do T. Conflitos de
18/12/2013 – Proc. n.º 028/13
[11] Acórdão do Tribunal dos Conflitos de 23-11-2017 – Proc.
Nº 010/17
[12] Carlos Alberto Fernandes Cadilha in Nuno Miguel Marques-“Casa
tomada”? Da competência jurisdicional sobre litígios relativos a acidentes
rodoviários ocorridos em concessões rodoviárias- Revista da ordem dos advogados
ANO 79, 2019
[13] Mário Aroso de Almeida, Manual Processo
Administrativo- 4ªedição 2020, Almedina
[14] Acórdão tribunal dos conflitos de 20-10-2016 Proc. 021/16
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