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A revisão de 2019 e o recurso de revista das decisões arbitrais: breves reflexões

 

A revisão de 2019 e o recurso de revista das decisões arbitrais: breves reflexões            

 

            O artigo 185º-A do Código de Processo nos Tribunais Administrativos (CPTA) foi profundamente modificado pela Lei n.º 118/2019, que introduziu um regime próprio no que concerne ao recurso das decisões arbitrais. Se, aquando da sua adição ao CPTA em 2015, o preceito se limitava a dispor, sob a epígrafe “Impugnação das decisões arbitrais”, que “As decisões proferidas pelo tribunal arbitral podem ser impugnadas nos termos e com os fundamentos estabelecidos na Lei de Arbitragem Voluntária”, a revisão do CPTA de 2019 veio consagrar legalmente a possibilidade de recurso da decisão arbitral para o Tribunal Constitucional (n.º 2) e para o Supremo Tribunal Administrativo (n.º 3).

            No que respeita à possibilidade de recurso para o Tribunal Constitucional, esta existirá porquanto e na parte em que se “recuse a aplicação de qualquer norma com fundamento na sua inconstitucionalidade” ou porquanto se “aplique uma norma cuja inconstitucionalidade haja sido suscitada (185º-A/2). Por sua vez, a possibilidade de recurso para o Supremo Tribunal Administrativo, diga-se com efeito meramente devolutivo, dependerá da “oposição da decisão arbitral, quanto à mesma questão fundamental de direito, com acórdão proferido pelo Tribunal Central Administrativo ou pelo Supremo Tribunal Administrativo (n.º 3, al. a)), da circunstância de estar a ser apreciada uma “questão que, pela sua relevância jurídica ou social, se revista de importância fundamental” (n.º 3, al. b), primeira parte) ou da “necessidade de uma melhor aplicação do Direito (n.º 3, al. b), in fine). Deste modo, e conforme assinala TIAGO SERRÃO, a disposição veio prever expressamente o recurso de constitucionalidade (n.º 2), o recurso de uniformização de jurisprudência (n.º 3, al. a)) e o recurso de revista (n.º 3, al. b)) [1]. É sobre este último que incidirá a nossa análise.

            MÁRIO AROSO DE ALMEIDA considera que a solução presente no artigo 185º-A/3, al. b), tem o mérito de “reforçar as garantias de conformidade da arbitragem de Direito Administrativo aos parâmetros de exigência pelos quais se deve reger”, e sem embargar a celeridade na resolução dos litígios considerados [2]. Daqui se depreende que, na opinião do autor, a arbitragem de Direito Administrativo não consegue por si, e pelo menos em moldes perfeitos, respeitar os parâmetros a que está adstrita, nomeadamente em matéria de aplicação do Direito. Com a devida vénia, não encontramos quaisquer indícios normativos de que assim o seja, antes pelo contrário. Aliás, e conforme explicita o próprio, a arbitragem de Direito Administrativo fundamenta-se na “natureza jurisdicional dos tribunais arbitrais e na subordinação dos árbitros à lei e ao Direito” [3]. No nosso entender, o reconhecimento da natureza jurisdicional dos tribunais arbitrais, expressamente consagrada no artigo 209º/2 da Constituição da República Portuguesa (CRP), reflete, em termos imediatos, a sua idoneidade para aplicar o Direito [4] - como são idóneos a fazê-lo os tribunais estaduais [5]. Essa idoneidade para aplicar o Direito permite cimentar a conclusão de que os tribunais arbitrais acautelarão os interesses subjacentes aos litígios emergentes das relações jurídicas administrativas da mesma forma que os tribunais estaduais o fariam. De facto, a feitura das leis, e a ponderação axiológica que lhe é inerente, cabe ao legislador. Aos aplicadores (juízes) caberá uma ponderação de natureza diversa, que é concretizada através de um exercício interpretativo e que obedece a parâmetros normativos transversais a tribunais arbitrais e estaduais. Note-se, a este propósito, que os árbitros não poderão julgar segundo a equidade (art. 185º/2 CPTA).

            Nesse sentido, a solução imposta pela revisão de 2019 não se compreende em termos sistemáticos, sendo a sua articulação com a função jurisdicional reconhecida pela Constituição aos tribunais arbitrais evidentemente deficiente. De resto, julgamos que esta solução é fruto de um verdadeiro preconceito do legislador [6], que revela considerar os tribunais arbitrais menos aptos a acautelar os valores subjacentes aos litígios administrativos. Levantamos algumas questões. Devem os Tribunais Estaduais aplicar o Direito de um modo distinto dos tribunais arbitrais? Não é, em primeira linha, ao legislador que cabe definir os valores que pautam as relações jurídico-administrativas, vinculando os diferentes aplicadores do Direito? Que indícios normativos sugerem uma menor idoneidade dos tribunais arbitrais para aplicar o Direito?  Não sendo idóneos a aplicar o Direito (ou sendo-o menos), como é que se justifica a natureza jurisdicional dos tribunais arbitrais? E os tribunais arbitrais serão plenamente idóneos para julgar (definitivamente) certos litígios, mas outros não? Reconhecemos que estas questões operam, no essencial, num plano abstrato, mas não deixam de refletir certas incoerências ao nível do sistema. Diga-se, ainda, que os problemas que têm vindo a surgir num plano concreto – e que não se circunscrevem ao domínio arbitral - podem (e devem) ser resolvidos em moldes que não comprometam a função jurisdicional dos tribunais arbitrais.

            Outras críticas, porventura mais certeiras e assertivas, podem ser equacionadas. Desde logo, e como refere TIAGO SERRÃO, a banalização do recurso de revista pode ser prejudicial à celeridade na resolução de litígios [7], que é uma das vantagens inerentes à arbitragem [8]. Ademais, a revisão de 2019 também vem fomentar uma “descaracterização da arbitragem administrativa”, e fá-lo de forma totalmente conflituante com o princípio (basilar) da responsabilização das partes [9]. De facto, as partes, apesar de terem escolhido as instâncias arbitrais para a resolução do litígio, poderão, em (in)determinadas situações, conhecer uma “escapatória” defronte uma decisão desfavorável. Esta possibilidade de “fuga” para os tribunais estaduais não se coaduna com os fundamentos da arbitragem e, inclusive, acaba por anular parte da sua essência, na medida em que os tribunais estaduais (leia-se o Supremo Tribunal Administrativo) poderão reclamar para si a apreciação do litígio – se o fizerem, não terá sido o tribunal arbitral a dirimir o litígio (mais uma vez, apesar de as partes o terem acordado).

            Não deixamos, contudo, de reconhecer que os litígios jurídico-administrativos podem ter por subjacentes interesses fundamentais da comunidade e que, portanto, as suas decisões podem merecer ser escrutinadas a nível estadual [10]. Não obstante, a revisão de 2019, por não circunscrever a possibilidade de recurso aos cenários de salvaguarda desses interesses, parece alicerçar-se sobre a ideia de que os tribunais arbitrais não são perfeitamente idóneos no que concerne à aplicação do Direito [11] (ou, em alternativa, na ideia de que os tribunais estaduais devem aplicar o Direito de forma distinta). Acresce que, aparentemente de forma infundada, a revisão de 2019 vem prejudicar a celeridade na resolução de litígios, bem como desvirtuar a figura da arbitragem de Direito Administrativo. Por fim, e como agravante, serão os tribunais estaduais a definir os pressupostos da admissibilidade do recurso - considerando a amplitude da disposição. Muito mais equilibrada teria sido a solução presente na proposta de articulado da Lei de Arbitragem Administrativa Voluntária [12] – não só por conservar as vantagens associadas à arbitragem, mas por ser muito mais respeitadora da natureza dos próprios tribunais arbitrais.

 

[1] SERRÃO, TIAGO, A Arbitragem no CPTA, in AMADO GOMES, CARLA / F. NEVES, CARLA / SERRÃO, TIAGO (coord.), Comentários à Legislação Processual Administrativa, vol. II, 5ª Edição, Lisboa, 2020, p. 905.

[2] AROSO DE ALMEIDA, MÁRIO, Manual de Processo Administrativo, 4ª Edição, Coimbra, 2020, reimpr., p. 547.

[3] Ibidem, p 536.

[4] Sem prejuízo das suas limitações no que concerne à “execução” do Direito. Note-se, porém, que essas limitações se coadunam com a natureza da arbitragem (aliás, resultam desta). Cf.  GOMES CANOTILHO / VITAL MOREIRA, Constituição da República Portuguesa Anotada, vol. II, 4ª Edição, Coimbra, 2010, pp. 551 e 552.

[5] BRITO BASTOS, FILIPE, A arbitragem em Direito Administrativo e o direito fundamental de acesso ao Direito nos tribunais portugueses, in AMADO GOMES, CARLA / SOARES FARINHO, DOMINGOS / PEDRO, RICARDO (coord.), Arbitragem e Direito Público, Lisboa, 2018, reimpr., p. 90. O autor refere-se à “igual” ou “equiparável” dignidade dos tribunais estaduais e arbitrais.

Ver, também, VIEIRA DE ANDRADE, JOSÉ CARLOS, A Justiça Administrativa, 17ª Edição, Coimbra, 2019, pp. 77 ss.; e o Acórdão 230/86 do Tribunal Constitucional. Os tribunais arbitrais são verdadeiros tribunais e exercem a função jurisdicional.

[6] O recurso de decisões arbitrais pressupõe uma certa “desconfiança” quanto ao “mérito das suas discussões”. MOURA RAMOS, VASCO, Que fundamentos específicos de impugnação e de recursos se devem admitir, in AMADO GOMES, CARLA / PEDRO, RICARDO, A arbitragem administrativa em debate: problemas gerais e arbitragem no âmbito do Código dos Contratos Públicos,  Lisboa, 2018, p. 199.

[7] SERRÃO, TIAGO, A  Arbitragem…, p. 907.

[8] Cf. Serrão, Tiago/ Calado, Diogo, A arbitragem de direito administrativo, em Portugal: uma visão panorâmica, R. Bras. Al. Dis. Res. – RBADR | Belo Horizonte, ano 01, n. 01, jan./jun. 2019, p. 250.  

[9] SERRÃO, TIAGO, A Arbitragem…, p. 907.                    

[10] Cf. Serrão, Tiago (coord.), Arbitragem Administrativa: Uma Proposta. Coimbra, 2019, p. 90.

[11] I.é, para lá das limitações inerentes ao poder jurisdicional dos tribunais arbitrais.

[12] Serrão, Tiago (coord.), Lei da Arbitragem Administrativa Voluntária / Proposta de Articulado. Em especial, artigo 15º.


Diogo Canário, subturma 7 

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