A JURISDIÇÃO ADMINISTRATIVA NA ORDEM CONSTITUCIONAL PORTUGUESA
A organização jurisdicional é, na ordem jurídica portuguesa,
estruturada por uma primeira divisão categorial dos Tribunais (v. art. 209.º
CRP), de onde se destaca a central partição entre tribunais judiciais e
administrativos (e fiscais). A dignidade constitucional conferida a esta
matéria salienta desde logo a imperiosa necessidade de que o tratamento estrutural
e regimental[1] das
instituições que dirimem os litígios
emergentes das relações jurídico-administrativas (cfr. art. 212.º, n.º3 CRP)
seja (ou possa ser) diverso daquele que é dado aos problemas de índole cível ou
criminal. Daqui é possível extrair uma primeira conclusão: a independência e
autonomia dos Tribunais Administrativos e Fiscais assegura-lhes a inexistência
de qualquer relação de hierarquia ou dependência face aos tribunais judiciais -
ao contrário daquilo que existe entre Tribunais Administrativos.
Com isto, não se afirma que a diversidade de jurisdições comine uma
pluralidade de princípios quanto às várias categorias de Tribunais. Bem pelo
contrário: é na unidade dos princípios constitucionais jurisdicionais, comuns a
qualquer categoria, que se fundam os alicerces de qualquer jurisdição. Tanto
mais (e sobretudo) desde que com a Revisão Constitucional de 1989 se formalizou
constitucionalmente a obrigatoriedade de um comando criador de uma jurisdição
administrativa e fiscal.
Esta separação intui uma repartição de competências entre Tribunais de
acordo com a natureza das questões em razão da matéria (natureza objectiva) que
valoriza a especificidade organizativa e funcional da jurisdição
administrativa. O pendor constitucionalista da nossa análise prende-se com a
necessidade de realçar a forma como o tratamento profundo e realista desta
jurisdição pela Lei Fundamental confere à Justiça Administrativa[2] uma real
capacidade de efetivar a tutela jurisdicional dos administrados (art. 268.º,
n.º 4 CRP). A mesma será por nós, sumariamente, analisada sob a égide de três
vetores que particularmente destacamos.
Primeiramente, a amplitude e flexibilidade do conceito relações jurídicas administrativas[3] obriga
constitucionalmente a que a jurisdição administrativa não se cinja somente às
figuras tradicionais da actuação administrativa - v.g. acto, regulamento e contrato - e que muito menos tenha um
pendor excessivamente actocêntrica.
Garante assim, em consonância com a interpretação exigida pela evolução do
preceituado no actual art. 268.º, n.º4 CRP, que independentemente da forma
mediante a qual a Administração contrarie posições subjectivas dos
particulares. O que diga-se, não é uma questão apenas da solidez “interna” do
Direito Administrativo mas que se estende ao princípio da separação de poderes: a forma como o acto jurídico
administrativo é formalmente representado não sustenta um meio de fuga ao
controlo pelos Tribunais[4]. Todavia,
diga-se, esta dimensão não favorece somente a defesa do princípio da tutela jurisdicional efectiva mas também “protege” o princípio da legalidade: quando a acção
administrativa seja levada a cabo pelo Ministério Público, a possibilidade de
integração de todas e quaisquer figuras da actividade Administrativa permite,
em todas as circunstâncias, a defesa da lei e da Constituição.
Igualmente em defesa da Constituição, a jurisdicionalização do
controlo da legalidade da actividade administrativa permite a tutela da Lei
Fundamental. Não tendo os particulares legitimidade directa para suscitar junto
do TC a inconstitucionalidade de normas (administrativas), a existência de um
“contencioso administrativo” permite a fiscalização da constitucionalidade
pelos Tribunais Administrativos: a título incidental, por comando
constitucional dirigido a TODOS os Tribunais (art. 204.º CRP) e de forma
directa (relativamente à legalidade superior), por criação da legislação
processual administrativa, como exemplifica o art. 73.º, n.º2 CPTA. A
suscetibilidade de aferição da conformidade constitucional da actividade
administrativa é especialmente relevante se considerarmos que na visão de
unidade das fases graciosa e contenciosa[5]
esse mesmo controlo se encontrava limitado ao limiar de fiscalização da
constitucionalidade a que a Administração se encontra sujeita.
Por fim, uma referência a outra consequência da constitucionalização
da jurisdicionalidade do contencioso administrativo: a vinculatividade das
decisões dos Tribunais Administrativos e Fiscais (art. 205.º CRP). A mesma
materializa-se sob a forma de dupla hélice. Em primeiro lugar, a
obrigatoriedade das decisões para todas as entidades - públicas e privadas -,
vinculando, portanto, a Administração e todo e qualquer particular que pudesse
estar em desacordo com a posição subjectiva reconhecida a outro administrado no
âmbito da relação jurídico-administrativa preconizada por este. Em segundo
lugar, a prevalência das decisões dos Tribunais da jurisdição administrativa e
fiscal, donde se retira que as mesmas não necessitam de confirmação ulterior
nem podem ser anuladas - por exemplo, pela Administração que delas discorde.
Assim, os particulares garantem a sua protecção perante a ilicitude inerente ao
desrespeito das decisões judiciais pela administração[6].
Após este sumário périplo pela densificação constitucional da
jurisdição administrativa há uma conclusão óbvia que se extrai: a dignidade
constitucional conferida ao tratamento destas matérias confere estabilidade às
orientações que moldam a concretização da tutela jurisdicional das posições
jurídicas dos administrados.
Maria Beatriz Cunha- n.º 59143
[1] Neste sentido, Gomes
Canotilho / Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada,
II, 4.ª ed., p. 547;
[2] V. o conceito, Vieira
de Andrade, A Justiça Administrativa,
17.ª ed., p. 7;
[3] Cláusula reafirmada no artigo 1.º do ETAF;
[4] Assim se sustenta o trecho independentemente da sua forma (cit. art. 268.º, n.º4 CRP),
acrescentado com a revisão constitucional de 1982 procure evitar que o Governo,
no exercício da função administrativa, emita actos administrativos sob a forma
de lei;
[5] V. Marcello
Caetano, Manual de Direito
Administrativo, II, 10ª Edição, pp.1326-1327 ;
[6] Assim, Gomes
Canotilho / Vital Moreira, op. cit., p. 529;
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